Propositadamente ou não, com a constituição do Instituto Português de Cinema (IPC), o Estado Novo marcelista conseguira “sangrar” o Centro Português de Cinema (CPC), um dos principais “inimigos” da política cinematográfica oficial. Cooperativa formada em plena primavera marcelista, o CPC reunia o núcleo duro do novo cinema português, um conjunto de duas dezenas de cooperantes apoiados pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) por um período experimental de três anos (1971-73).
As alterações provocadas pelo 25 de Abril no cinema não foram apenas políticas e ideológicas. Também do ponto de vista sócio-profissional e produtivo, o panorama cinematográfico português conheceu diversas transformações neste período e nos anos imediatos que se seguiram. Um dos fenómenos mais curiosos então verificados foi a proliferação de cooperativas de produção cinematográfica. Ainda nas vésperas e no imediato pós-25 de Abril, o exemplo cooperativo do CPC daria origem à criação de diversas cooperativas de produção – Cinequanon, Cinequipa, Grupo Zero, entre outras – que tiveram uma duração efémera graças a pontuais subsídios públicos e à produção de pequenas e médias metragens.
Procurando reagir à estratégia de “esvaziamento“ do CPC promovida pelo IPC, que ia “aliciando“ os cooperantes com as “promessas“ de financiamento, alguns membros do CPC propuseram uma redefinição para a cooperativa: “poderá vir a concentrar a sua acção num programa de carácter mais experimental” (Cinéfilo, 16-III-1974: 22). Em 1977, alguns anos depois de terminado o acordo de financiamento com o CPC, como explica José Filipe Costa no seu livro O Cinema ao Poder!, o Conselho de Administração da FCG decidiu passar a financiar “projectos que eram relativamente sui generis“, que “não se destinavam ao circuito comercial e que pudessem genericamente enquadrar-se no espírito do referido Museu de Imagem e Som.”
Do acordo firmado entre a FCG e a Associação de Cooperativas e Organismo de Base da Actividade Cinematográfica (ACOBAC) – da qual faziam parte o CPC, a Cinequanon, a Cinequipa e o Grupo Zero –, resultaria uma série de apoios financeiros à produção, directa ou indirectamente enquadrados no projecto do Museu da Imagem e do Som, a diversas curtas, médias e longas-metragens, na sua grande maioria do género documental.
O Museu da Imagem e do Som foi um projecto informal do CPC que pretendia criar condições para, segundo João Bénard da Costa, “a produção de uma série de filmes que dessem conta do Portugal desconhecido que está à espera de nós, de tradições e costumes em vias de desaparecer, mas também de filmes biográficos sobre alguns dos nossos grandes vivos”. Mais do que um projecto concreto, o Museu da Imagem e do Som foi sobretudo uma ideia de cinema, um plano de intenções que marcou diversos realizadores portugueses durante esses anos e que teve obras mais ou menos conseguidas. Este singular “momento antropológico“ mostrou uma audácia e uma versatilidade criativa que constituiu uma etapa importante na construção da identidade do cinema português e do Portugal recém-democrático.
Desse projecto informal fazem parte filmes muito heterogéneos, entre os quais: Nós por cá todos bem (1976) de Fernando Lopes (prod. CPC), filme que mistura actores profissionais e amadores, documentário e ficção, na aldeia natal do realizador (Várzea, Beira Litoral); Ma femme chamada Bicho (1976) de José Álvaro de Morais (prod. CPC), documentário sobre Maria Helena Vieira da Silva; Máscaras (1976) de Noémia Delgado (prod. CPC), documentário sobre as festas populares arcaicas no nordeste transmontano; Terra de Abril (1977) de Philippe Constantini (prod. INA/França), documentário sobre as tradições da aldeia de Vilar de Perdizes; Os bonecos de Santo Aleixo (1977) de João e Jorge Loureiro (prod. Cooperativa Paz dos Reis), documentário sobre os títeres tradicionais alentejanos ambientado na aldeia homónima; Gente do Norte ou a história de Vila Rica (1977) de Leonel Brito (prod. Cinequanon), documentário sobre a comunidade transmontana de Torre de Moncorvo; Maladena (1977) de Manuel Costa e Silva (prod. CPC), ambientado no Alentejo; O construtor de anjos (1978) de Luís Noronha da Costa (prod. IPC), experiências plásticas em registo gothic ambientado em Sintra; Veredas (1978) de João César Monteiro (prod. IPC), filme inspirado em contos tradicionais portugueses compilados por Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira; Goa e Mombasa (1980) de António Escudeiro (prod. CPC), dois documentários sobre a influência portuguesa no Oriente; Música Moçambique (1981) de José Fonseca e Costa (prod. Filmform), registo de um festival de música tradicional moçambicana.
No final dessa década, uma a uma, as cooperativas foram fechando actividade ou reconvertendo as suas estruturas cooperativas a uma produção de mercado. No entanto, durante a segunda metade da década de 70, o cinema português viveu um singular período, mantendo uma actividade cinematográfica activa sem produtores no sentido clássico do termo e buscando formas alternativas de criação e produção.