Vaghe stelle dell’Orsa, io non credea
Tornare ancor per uso a contemplarvi
Sul paterno giardino scintillanti,
E ragionar con voi dalle finestre
Di questo albergo ove abitai fanciullo,
E delle gioie mie vidi la fine.
Giacomo Leopardi in Le ricordanze
Como sucedeu por diversas vezes no cinema de Luchino Visconti, o melodrama traz sempre “água no bico”. De Senso (Sentimento, 1954) a Morte a Venezia (Morte em Veneza, 1971), e passando pelo muitas vezes esquecido Ludwig (Luís da Baviera, 1973), as tribulações — sejam elas íntimas, sociais ou românticas — dos personagens carregam uma sensibilidade de decadência moral, aliada a um formalismo “seco” na transposição do argumento para o ecrã que remete, inevitavelmente, para os apegos neo-realistas do cineasta. Nesse âmbito, Vaghe stelle dell’Orsa… (Estrelas Vagas de Ursa Sandra, 1965) estará, porventura, entre as obras mais melodramáticas — no sentido de “drama com música”, tal como a sinopse do filme, publicada pela Cinemateca Portuguesa, devidamente sublinha — de Luchino Visconti.
Re-imaginando o mito de Electra, e inspirado no poema de Giacomo Leopardi transcrito em epígrafe, Vaghe stelle dell’Orsa… detalha o regresso de Sandra (Claudia Cardinale) não só à sua terra natal em Itália, como também a um passado marcado pelo infame papel da sua mãe na morte do próprio marido (de origem judaica, foi denunciado e condenado a um campo de concentração, onde acabaria por falecer), e por uma relação de contornos incestuosos com o irmão Gianni (Jean Sorel).
Uma obra de pura poesia visual que, ao bom estilo temático de Luchino Visconti, possibilita-nos a fruição dos prazeres da ambiguidade, seja ela de espírito ou da carne, que só o cinema consegue exibir.
“Lamento desapontar-te, mas aqui não existem fantasmas”. Assim se expressa Sandra ao seu marido americano Andrew (Michael Craig), pouco depois de se instalarem na antiga casa dela, uma mansão labiríntica, de arquitectura clássica e decoração arcaica, onde o tempo aparenta ter ficado suspenso. Naquele lugar, e ao contrário da confissão de Sandra, os “fantasmas” são tudo menos espectrais. Gianni move-se por entre as sombras do casarão, obstinado por uma vida de poucas responsabilidades e com planos de publicar um manuscrito em que narra o amor incestuoso de dois irmãos, enquanto que a mãe de Sandra (Marie Bell, num impactante registo over the top) revela o evidente desdém que nutre pela filha.
Partindo deste contexto narrativo, no seio de segredos e mentiras familiares de impossível remissão e que culminarão num ajuste de contas convenientemente melodramático (neste particular, a sonoridade da partitura de Augusto D’Ottavi é de tremenda eficácia), Luchino Visconti investe, acima de tudo, na “devassa fílmica” de uma classe social materialmente abastada, mas plena de crepúsculo moral e perversidade sexual.
Essa denúncia, em Vaghe stelle dell’Orsa…, manifesta-se notoriamente através da mestria técnica de Luchino Visconti. O modo como a câmara se “apaixona” pelo rosto e compleição de Claudia Cardinale e ostenta algo tanto de erótico como de perturbador, num voyeurismo que quase pretende colocar o espectador ao nível das motivações incestuosas de Gianni.
Este género de simbolismo estende-se, sem espanto, para a direcção artística e a mise en cène do filme. Sequências como a narração do passado da família da protagonista no interior de um museu de ruínas etruscas, as labaredas de uma fogueira como pano de fundo para um diálogo sobre incesto entre Sandra e Gianni, ou a iluminação expressionista que cerceia os personagens no clímax do filme, revelam uma obra de pura poesia visual que, ao bom estilo temático de Luchino Visconti, possibilita-nos a fruição dos prazeres da ambiguidade, seja ela de espírito ou da carne, que só o cinema consegue pôr a nu.
Vaghe stelle dell’Orsa… é exibido no dia 25 de Junho, às 18h, na Cinemateca Portuguesa, no âmbito do ciclo “O Melodrama do Trágico ao Operático”.