Julho chegou, o tempo vai esquentando e o ar condicionado do cinema é refúgio do bafo escaldante que este ano teima em não chegar. Daí que recordemos o mês passado, já com saudade dos dias mornos. Os walshianos destacam alguns refrescos de Junho: o ascético John Wick e o seu fiel companheiro canino voltaram a morder as poltronas do cinema, a dupla Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres encheu a sala de fumo e ruídos misteriosos, a boneca Annabelle já começa a chatear, as linhas tortas do amor pelas redes sociais montam uma teia de afectos des-cruzados e Jarmusch faz um filme meio morto-vivo…
Depois de um primeiro tomo que bem esgalhava um personagem-murder-by-contract com quem simpatizamos, e de uma espaventosa e aborrecida segunda parte, chega às salas o terceiro capítulo da série, uma chouriça de caça sem gordurinhas quase nenhumas: John Wick: Chapter 3 – Parabellum (John Wick 3 – Implacável, 2019). Chad Stahelski, realizador dos três volumes (depois de uma carreira de duplo, coordenador e coreógrafo de cenas de acção) começa o filme a correr – literalmente -, Keanu corre, e o filme com ele, afirmando desde logo que já não há arcos narrativos, plot points, ou dilemas que necessitem enquadramento. Aqui já só conta o potência cinética de um actor que se movimenta e de todos aqueles que lhe vão na peugada. O filme sabe-o e diverte-se no jogo das variações: agora uma perseguição a cavalo pelas movimentadas ruas de Nova Iorque, depois outra, montados em motas com ninjas e espadas de samurai, uma terceira acompanhada de cães treinados para matar, e assim sucessivamente (como diria o Monteiro). A gestão de expectativas torna-se, então, num lúdico vai~e~vem (idem) que pondera a torrente visual e sonora com a espera (a contra-relógio). Um dos momentos mais deliciosos dá-se, logo no início, quando John tem que desmontar e remontar uma pistola o mais depressa possível para conseguir dar um único tiro ao primeiro capanga que o persegue. Tudo cronometrado ao milésimo de segundo, evidenciando o compasso rítmico que tudo gere neste filme de coreógrafo (há uma montagem paralela entre ballet russo e ninjas). É o próprio realizador que cita (em entrevista recente) os musicais clássicos americanos, os filmes de artes marciais wuxia e as suas declinações no cinema de Hong Kong e o rigor dos gags dos palhaços do mudo. Aliás, no que a este último aspecto diz respeito, o filme explicita-o quando exibe (literalmente), logo na primeira cena, um filme de Buster Keaton (e lembre-se o cartaz do segundo episódio da série que homenageava Harold Lloyd). E já nem falo (falando) da improvável (mas não impossível) relação que Stahelski apresenta entre uns yakusas das arábias e os cómicos do cinema mudo (vários deles com dedos decepados em virtude dos seus números mais arriscados).
O exercício é pois evidente: como ultrapassar o feito circense do tomo anterior, como ser ainda mais ousado na verosimilhança das sequências, mais virtuoso na marcação dos gestos e dos movimentos, mais histriónico no desenho dos personagens tipo? E a reposta surge-nos, na tela. Mais e mais e mais é mais, é muito mais. Não há excesso em John Wick porque John Wick é já o excesso feito filme. E como se costuma dizer, não há fartura que não dê em rulote de feira, ou melhor, não há excesso que não leve à ascese. As mortes no filme conduzem à mortificação do herói e desengane-se o leitor se julga que o que lê é delírio crítico: toda a religiosidade que descrevo é aqui explícita. Ouvem-se, nos diálogos, “arte é dor” ou “assassino vem de assayan, aquele que tem fé” e uma mulher que junta, a certa altura, as mãos em posição de reza vê-as trespassadas por uma espada. Tudo se resume, afinal, numa moral não materialista onde o John se liberta das suas posses para poder permanecer com as memórias (e fazê-las perdurar) – ele sacrifica os objectos e o próprio corpo para reaver o direito de lembrar. Stahelski faz tudo isto sem grande pompa, sem se levar demasiado a sério, salpicando tudo com a cebola crocante da auto-ironia. Pena que a pujança dos primeiros minutos (o gore da luta na biblioteca ou da sequência do museu de armas com todos aqueles punhais voadores) se perca na secura tecnicamente impressionante mas morosa das batalhas finais, onde nem os espelhos partidos a piscar o olho ao wellesiano conseguem despertá-lo do torpor da extrema perfeição.
Ricardo Vieira Lisboa
Mais de dez anos após Cordão Verde (2009), a sua estreia na realização, a dupla Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres volta ao Vale do Guadiana, concelho de Mértola, para filmar. Desta vez uma hora de duração e no centro da maioria dos seus planos dois fornos cobertos de terra, junto a um lago, fumegando, produzindo artesanalmente carvão a partir de madeira. Contudo, este não é um filme didáctico sobre os procedimentos dessa actividade. Aliás, a recusa de planos muito aproximados, de detalhe, e o privilégio de composições mais afastadas e gerais (há quem veja nessa escolha algo de fordiano – com o interior dos fornos a corresponder ao abrigo da “casa”, face ao espaço aberto do monument valley) afasta essa hipótese. Em vez disso, Terra (2018) procura um outro “grande plano”, que é como quem diz, a interacção do homem com o fazer da natureza (a luz a mudar, as sombras, os estados da terra, as formas do fumo e do céu). Como se para filmar de perto a natureza e a integração do homem nela (e não este como o centro da physis) o grande plano correspondesse ao plano geral.
E nessa escala Hiroatsu e Rossana procuram a criação de quadros atmosféricos e telúricos em movimento, nos quais se dão a ver as micro-perturbações do espaço pelo escoamento langoroso no tempo. O filme habita esses micro choques entre o visível e o audível: uma matilha de cães que surge muito ao longe já depois de ser anunciada pelo seu ladrar, um grupo de aves migratórias que rasga o crepúsculo, uma labareda tímida que surge no meio do fumo misterioso; resgatando assim o espectador do seu habitual entorpecimento, da sua visão toldada por uma certo verbalismo e narrativização causal – o espectador testemunha de um dado evento produtivo – e obrigando a tornar-se, por momentos, nessoutro espectador observador de uma progressiva e gradual transformação. No fundo, resgatando uma certa vitalidade primordial do cinema e suas matérias-primas (a mudança da luz, da cor, da acção nos espaços, mas também o tempo do olhar, do sentir, do pensar) para um tempo de observação do outro. O outro que não é necessariamente o humano, que pode bem ser a água, o fogo, o fumo, os pássaros, os fornos em combustão. Ou essa imagem recorrente, do fumo saindo dos fornos como uma Terra, pachorrenta, fumando.
Carlos Natálio
Vou ver o novo filme de Jim Jarmusch depois de ler uma notícia em que o realizador nomeia a mais recente temporada de Twin Peaks como o melhor filme da década. Esta associação, que me surpreende, entre Jarmusch e Lynch foi ganhando um inusitado eco ao longo desse meu visionamento de The Dead Don’t Die (Os Mortos Não Morrem, 2019). Primeiro, ambos os realizadores constroem uma visão satírica – com o seu quê de corrosiva e desencantada – acerca de um certo american way of life. Tanto Lynch como Jarmusch investem numa construção episódica, cosendo esparsas narrativas entre si, eivada de um ritmo lânguido que vai convertendo o drama numa lentíssima comédia do absurdo. Depois, estamos na presença dos dois maiores adoradores de café do cinema americano contemporâneo.
A incursão de Jarmusch no cinema de zombies, tradição que nos remete para os filmes políticos de George A. Romero, verdadeiros tratados filosóficos sobre a sociedade do consumo, tem um alvo muito claro. O meu colega Carlos Alberto Carrilho identifica-o muito bem no seu texto: ele é a América Trump. Essa dimensão flagrantemente política casa com uma certa apatia geral que caracteriza a sua família de personagens. Perante um muito fortemente pressentido “fim do mundo”, elas suspiram, como se, de facto, a morte fosse a inevitável culminância da sua apatia – apatia política? Também, claro. Estamos algures entre a mensagem política de Romero – aqui, sublinho, demasiado flagrante -, um humor deadpan (literalmente dead!) que se tornou costumeiro em Jarmusch – neste ponto, estamos longe da inspiração de Broken Flowers (Broken Flowers – Flores Partidas, 2005) – e o retrato de uma sociedade morta-viva que antes de o ser já o era, que voga algures entre o absurdo lynchiano e a depressão cómica de um Roy Andersson. Tudo está à vista, flagrante desde os primeiros instantes – até as private jokes tornam-se entediantes, em consonância com a tal apatia geral que vem de todo o lado e que justifica tudo. Mas como pode uma comédia destas sobreviver à apatia de que tanto se alimenta? É aí que o tiro sai pela culatra: Jarmusch queria falar de uma sociedade morta-viva e acaba completamente sequestrado por uma comédia mortiça, tão auto-referencial como pedante e (inevitavelmente?) autofágica.
Luís Mendonça
A contorção narrativa começa a parecer demasiado esforçada: a saga Annabelle chega ao seu terceiro tomo – quarto se tivermos em conta a sua origem, o filme-mãe The Conjuring (The Conjuring – A Evocação, 2013) – e a fonte das ideias começa nitidamente a secar – o primeiro, de John R. Leonetti, era um bom filme de terror pobre, ao passo que o segundo, de David F. Sandberg, uma máquina bem oleada de horror cinético. O primeiro problema aqui é, curiosamente, o argumento. Digo que é curioso isso porque o realizador, Gary Dauberman, foi precisamente o autor dos argumentos dos primeiros Annabelle. Sente-se, logo nos primeiros minutos, que os filmes têm vindo a ser feitos sem se pensar – ou pensando muito pouco – numa obra seguinte. Portanto, quanto mais o enredo estica, mais tempo se perde com contextualizações espúrias, inábeis, verdadeiramente desengonçadas. É o caso deste terceiro filme. Depois de “estar justificada” a existência desta continuação, Annabelle Comes Home (Annabelle 3 – O Regresso a Casa, 2019) começa a carburar. Como em quase todos os filmes do universo Wan, a casa – neste caso, a casa do doce casal de “caça-fantasma” composto por Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga) – é o verdadeiro protagonista da acção.
Desde o fenomenal The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016) que não visitávamos estes corredores – aquele papel de parede florido absolutamente inesquecível! – bem como o lugar onde estão confinados todos os objectos amaldiçoados recolhidos pelos Warren. O filme anda às voltas neste décor e esse efeito de repetição – e até de hesitação/moleza dramática – é a parte mais interessante do filme, porque a concentração física da acção confere uma espécie de espessura maníaca ao drama. Posto isto, o filme gira sobre a sua própria mitologia, em regime ilustrativo primário, até ao ponto do esgotamento. E, a certa altura, desligamo-nos de tudo. Ainda assim, não quero deixar de destacar a melhor sequência do filme – a do jogo de sombras chinesas que ensaia uma progressão darwinista da boneca amaldiçoada até à figuração do demónio – e uma possibilidade que se sugere, sem se concretizar minimamente – um terror maquinado pela tecnologia antiga, como uma espécie de Toy Story (Toy Story: Os Rivais, 1995) do mal, em que máquinas de escrever, telefones do início do século XX e televisores velhinhos “voltam a casa” para nos assombrar. Ficam as (poucas) ideias, vai-se o filme.
Luís Mendonça
O filme de Rita Nunes é percorrido por um romantismo adulto, que é ao mesmo tempo cínico em relação ao amor, enquanto deseja ardentemente uma nova oportunidade. Os momentos mais intensos do filme mostram a comunicação por mensagens públicas (comentários) ou privadas, via Twitter, entre os protagonistas: o homem de meia-idade, António (Américo Silva), com um casamento de muitos anos que estagnou, e Luísa (Joana Ribeiro), jovem actriz em início de carreira, regressada de Londres com um namorado que lá deveria ter deixado. Essa intensidade está naquilo que é escrito, e este é um filme com um argumento (da autoria de Carmo Afonso e da realizadora) feito de frases curtas e inteligentes, quer sejam ditas ou apenas escritas, a que os actores tratam de dar corpo com a expressividade dos seus rostos.
Linhas Tortas descreve o trajecto acidentado até que os olhos de Luísa e António se encontrem frente a frente. Os mesmos olhos que à distância davam conta do nascimento de uma paixão onde apenas havia um rosto, a foto do perfil de Luísa, já que António, assumindo a sua condição de “monstro” que não se mostra, utilizava para a rede social a identidade do místico russo Grigori Rasputin. Mesmo assim o enlevo da bela Luísa em relação a ele irá nascer, antes mesmo de haver o desejado encontro entre os dois. O resto do filme faz-se de uma habilidade narrativa que trará novas complicações e implicações, que jogam com os papéis dos elementos da família de António, e da rapariga que dela fará parte mas não pelo caminho previsível que a primeira metade da história podia levar a supor. Mas que a acontecer dessa forma, faria de Linhas Tortas um filme que não estava à altura do seu nome e dos méritos que apresenta.
Ricardo Gross