É já este sábado que tem início o festival de verão para os cinéfilos portugueses: a 27.º edição do Curtas Vila do Conde decorre de 6 a 14 de Julho. A identidade do festival mantém-se fiel ao modelo das últimas edições, mas este ano um dos principais destaques do festival é mesmo o aparecimento de uma nova e ambiciosa secção, Cinema Revisitado, que deixará qualquer cinéfilo entusiasmado e apresenta assim uma oportunidade para ver ou rever no grande ecrã algumas obras essenciais da história do cinema, muitas vezes com cópias restauradas digitalmente. São os casos de Sophia de Mello Breyner Andresen (1969), de João César Monteiro, assinalando o centenário do nascimento da autora, Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920) de Robert Wiene, que será apresentado como um filme-concerto musicado ao vivo pela violoncelista Marta Navarro e o compositor e artista sonoro Tiago Cutileiro, uma sessão dedicada ao vilacondense José Régio que inclui alguns filmes como Romance de Vila do Conde (2008) e As Pinturas do meu Irmão Júlio (1965), ambos de Manoel de Oliveira, Do Céu ao Rio (1964), um raríssimo filme de António Reis (realizado com César Guerra Leal) e uma sessão dedicada ao cinema de Sergei Parajanov, mas onde também há espaço para assistir à cópia restaurada recentemente exibida em Cannes de First Blood (Rambo – A Fúria do Herói, 1982) de Ted Kotcheff e da experiência The Movie Orgy (1968) de Joe Dante.
O grande acontecimento será certamente a antestreia portuguesa de Bacurau (2019), o mais recente filme de Kleber Mendonça Filho, co-realizado com Juliano Dornelles, e que recentemente venceu o prémio do júri no Festival de Cannes. O realizador estará presente para apresentar o aguardado filme, depois de O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), numa altura conturbada para o próprio (foi notificado pelo governo brasileiro para devolver uma parte dos fundos atribuídos por um filme anterior) e que perante um país em convulsão, apresenta uma distopia como forma de combate e crítica social. Nesta secção, Da Curta à Longa, será também possível assistir aos dois primeiros episódios de Luz Vermelha (2019), uma série para a televisão da dupla André Santos e Marco Leão, baseada na história das “mães de Bragança”, e a longa-metragem Knives and Skin (2019), de Jennifer Reeder, uma presença habitual no festival, que apresenta aqui uma re-imaginação da história do desaparecimento de uma rapariga numa pequena comunidade.
Por outro lado, para os fãs de Thurston Moore, um dos fundadores da mítica banda Sonic Youth, o principal destaque deve ir para o espectáculo que este apresenta na secção Stereo, na próxima quarta-feira dia 10, em que irá musicar ao vivo uma selecção de curtas-metragens da realizadora Maya Deren – ou seja, um dos nomes mais importantes da vanguarda e experimentalismo da música encontra um dos nomes mais importantes da vanguarda e experimentalismo do cinema, numa proposta aliciante. Ainda nesta secção que propõe diálogos entre música e cinema, poderemos assistir a um espectáculo dos The Heliocentrics, colectivo londrino de jazz, que acompanhará um filme surreal e abstracto de Harry Smith, Heaven and Earth Magic (1962), uma performance do grupo Montanhas Azuis, e uma apresentação do documentário Mutantes S.21 – 25 anos depois (2019), sobre a celebração do álbum do grupo Mão Morta.
Porém, se forem admiradores da filmografia de um dos nomes mais importantes do cinema americano independente das últimas décadas, e que particularmente na década de 90 ajudou a definir uma abordagem narrativa e estilística muito própria, podem acompanhar o In Focus que o festival dedica a Todd Solondz, que estará em Vila do Conde para apresentar filmes como Welcome to the Dollhouse (1995), Happiness (Felicidade, 1998), Storytelling (Conta-me Histórias, 2001) e Wiener-Dog (Wiener-Dog – Uma Vida de Cão, 2016 ), e também para uma conversa com o público, que percorrerá certamente uma filmografia arriscada, polémica, de um olhar mordaz e incisivo sobre a sociedade contemporânea americana. Este ano o Curtas apresenta também um In Focus dedicado ao jovem realizador português Carlos Conceição, exibindo alguns dos filmes da sua curta mas promissora carreira, além de apresentar em estreia portuguesa o aguardado Serpentário (2019), depois da passagem pelo Festival de Berlim.
A selecção da Competição Nacional é sempre um dos pontos de maior interesse do festival, que permite acompanhar o melhor que é feito a nível de cinema em Portugal, entre a confirmação de nomes já consagrados e a descoberta de novos talentos. Os maiores destaques vão para os regressos de Gabriel Abrantes, depois de ter vencido o Prémio de Melhor Realizador no Curtas em 2017 e 2016, que apresenta agora Les Extraordinaires Mésaventures De La Jeune Fille De Pierre (2019), exibido na Quinzaine des Réalisateurs do Festival de Cannes; de Diogo Costa Amarante, depois de ter vencido o Urso de Ouro em Berlim com Cidade Pequena (2016), que apresenta agora O Verde do Jardim (2019); com Ruby (2019), Mariana Gaivão regista a sua 4ª presença no festival; André Marques regressa com Não Procures Mais Além (2019), depois Yulya (2015) e Luminita (2013), pelo qual venceu o prémio do Público; Francisco Valente, antigo colaborador do À Pala de Walsh, com Lisboa, 2018 (2019) e Pedro Neves com A Fábrica (2019) voltam também a marcar presença nesta secção. Mas será também com alguma expectativa que se aguarda pela estreia de Dia de Festa (2019), de Sofia Bost, depois da presença no último Festival de Cannes, e a estreia na ficção de Paulo Furtado (aka The Legendary Tigerman) com Amor Quântico (2019), depois de várias participações no festival em diferentes formatos. Entre os novos nomes, especial atenção para as estreias de Vasco Saltão com Ave Rara (2019), Maureen Fazendeiro com Sol Negro (2019), e Miguel Afonso com Cenas de Uma Vida Amorosa (2019). 18 de Rui Esperança (2019); Colmeal (2019) de Márcio Laranjeira e Sérgio Brás d’Almeida, Red Hill (2019) de Laura Carreira, Destiny Deluxe (2019) de Diogo Baldaia e Purple Boy (2019) de Alex Siqueira completam esta secção competitiva.
Mas há ainda a Competição Internacional, considerada por muitos também como o lado mais importante do Festival, que funciona ao mesmo tempo como cartão de visita e chamariz principal para os que se deslocam até Vila do Conde. Dos 36 filmes, destacamos 11 como forma de sugestões:
- A Story from Africa (2019) de Billy Woodberry: a estreia do consagrada realizador americano no Curtas, que ainda este ano teve direito a um ciclo na Cinemateca, explora a memória de uma expedição colonizadora portuguesa em Angola, através de uma série de fotografias impressionantes;
- America (2019) de Garrett Bradley: estima-se que 70% de todos os filmes feitos nos Estados Unidos entre 1912 e 1929 tenham desaparecido e que muitos deles terão sido assinados por artistas afro-americanos. America procura preencher essas lacunas da história, apresentando recriações do que seriam esses filmes ou mesmo fragmentos dos poucos filmes que sobreviveram;
- Please Speak Continuously and Describe Your Experiences as They Come to You (2019) de Brandon Cronenberg: do realizador de Antiviral (2012) chega um filme entre o pesadelo e o sonho sensorial, sobre uma experiência psicológica mas também visual;
- Gulyabani (2018) de Gürcan Keltek: do realizador de Meteorlar (Meteors, 2017), filme vencedor do Porto/Post/Doc em 2018, este é um registo mais próximo do experimental, hipnótico e poético, sobre a experiência de uma vidente na Turquia;
- Ghormua (Uma Carta para Casa, 2019) de Mukul Haloi: da Índia chega-nos uma das surpresas desta edição, com um filme que habita o espaço dos sonhos e do sono das obras de Apichatpong Weerasethakul mas que também retoma as mais belas tradições do cinema clássico oriental;
- Bicicletas (2019) de Cecilia Kang: um melodrama agridoce sobre a vida demasiado quotidiana entre um jovem casal abalada por um acontecimento à primeira vista menor, esta é uma visão humorista e humanista sobre a obsessão e as relações,
- My Generation (2018) de Ludovic Houplain – de um dos autores do inesquecível e multi-premiado Logorama (2009), esta é mais uma viagem pelos símbolos, emojis, ícones e logótipos que ocupam o nosso dia-a-dia a nível visual;
- R.I.S.E. (2018) de Bárbara Wagner, Benjamin de Burca: esta dupla tem vindo a desenvolver uma obra que questiona a forma como as populações são influenciadas nas suas vidas quotidianas pela integração da música como parte importante na definição de uma identidade – desta vez o interesse dos realizadores desloca-se agora para Toronto e para o modo como uma comunidade recorre à música para imaginar uma vida diferente, que se aventuram a recriar;
- The Six (2019) de Xi Chen e Xu An: da China chega-nos uma animação invulgar, que a partir de uma representação clássica de uma história apresenta uma nova forma narrativa e um puzzle a decifrar;
- Levittown (2018) de Nelson Bourrec Carter – o realizador condensa nesta curta-metragem, através de um monólogo, as ficções do cinema de Hollywood que tornaram a vida nos subúrbios da classe média branca, onde os negros não podiam adquirir uma casa, um estereótipo tão familiar, e que, ao mesmo tempo, expôs a realidade frágil da utopia do sonho americano, em que os problemas da segregação racial eram escondidos;
- The Christmas Gift (2018) de Bogdan Muresanu: uma espécie de fábula, na véspera de uma sangrenta repressão do ditador romeno Nicolae Ceausescu, e que representaria o início do fim do regime, e a poucos dias do Natal, na qual a inocência de uma criança coloca em perigo toda a família, quando um homem descobre que o seu filho enviou uma carta ao Pai Natal com um pedido demasiado invulgar.
Além dos já referidos motivos, não faltam outros aliciantes que justifiquem uma visita a Vila do Conde nos próximos dias: a Competição Experimental, programa que permite acompanhar as mais arrojadas e disruptivas apostas do cinema [com filmes de Bill Morrison, Ken Jacobs, Rainer Kohlberger e ainda o vencedor do Urso de Ouro de 2019 para curtas-metragens, Umbra (2019) de Florian Fischer e Johannes Krell]; a secção Take One!, com filmes de escola, onde despontam novos talentos; os diversos panoramas europeus; e a exposição “O Caso Caligari” na Solar Galeria de Arte Cinemática. A programação completa pode ser consultada neste link.