Há duas frases do Herzog, uma muito conhecida, a outra menos – que aparentemente nada têm a ver entre elas – que me têm deixado a moleirinha assada nos últimos dias. A primeira é a resposta à pergunta que abre o fantástico livro-entrevista conduzida por Paul Cronin, Herzog on Herzog. Pergunta este ao realizador alemão se, antes de começar a conversa, tem algum conselho filosófico para dar aos leitores. Ao que este responde com uma citação de um magnata da hotelaria que, quando lhe perguntaram o que gostava de deixar como ensinamento para a posteridade, respondeu: “todas as vezes que tomes um duche, certifica-te sempre que a cortina do chuveiro está dentro da banheira”.
A segunda frase não é propriamente de Herzog, surge antes no último plano da sua terceira curta-metragem, Die beispiellose Verteidigung der Festung Deutschkreutz (The Unprecedented Defence of the Fortress Deutschkreutz, 1967). Esta é uma sátira sobre as questões da guerra na qual quatro soldados entram num antigo castelo austríaco abandonado, outrora utilizado pelo exército russo no conflito com a Alemanha na 2ª Guerra Mundial. Encontram armas, uniformes… só não vislumbram inimigos e como estamos no território da dimensão psicológica, imaginária (cruel até) da propensão humana para a luta, é necessário criar de raiz novos inimigos à força, centelhas de novíssimas guerras. E o filme, dizia, termina com a seguinte frase, no seguimento da ilustração da necessidade antropológica que teríamos da guerra: “mais vale a derrota do que nenhuma guerra”.
A realidade em Herzog parece dura porque são duros os olhos que a registam.
Disse que estas frases nada tinham de irmãs, mas talvez um esforço hermenêutico as possa levar ao altar. Ambas, cada uma à sua maneira fazem a apologia da acção. A primeira rejeitando aquilo que tipicamente esperamos de um grande ensinamento teórico para a vida e que tem tudo a ver com outras dimensões do planeta Herzog: a recusa sistemática da ironia e do simbolismo (what you see is what you get); a recusa dos ensinamentos teóricos das escolas de cinema em detrimento da necessidade de viver a vida através da acção física; da necessidade de superar os próprios limites e aprender com os próprios falhanços [Herzog disse a propósito do seu primeiro filme de sempre, a curta Herakles (1962) que se falhasse iria falhar tão profundamente que nunca mais se levantaria]; ainda uma certa força intelectual, auto-confiança, independência para levar adiante os seus próprios projectos, enfrentando sem receios a dureza da realidade. A realidade em Herzog parece dura porque são duros os olhos que a registam.
A segunda frase é igualmente proveniente desta necessidade de enfrentar, em sentido lato, os obstáculos. A acção como um motor da aprendizagem e de superação. Os inimigos não são apenas os outros, mas uma vontade de superação interior, seja ela a de carregar um barco pelo Perú acima ou de percorrer milhares de quilómetros a pé. A biografia e a filmografia de Herzog estão cheias destes episódios. A primeira longa-metragem de Herzog, filmada na Grécia, nas ilhas de Kos e Creta, Lebenszeichen (Sinais de Vida, 1968) começa precisamente com este lema: se eu não tenho nada para fazer, enlouqueço. E é literalmente assim, a história de um soldado alemão, Stroszek, ferido durante a segunda guerra mundial que, não aguentando a inactividade, enlouquece. Loucura cuja imagem mais poderosa é do actor principal, Peter Brogle, disparando contra dezenas de milhares de moinhos de vento, imagem quixotesca esta que Herzog viu aos 15 anos quando visitava Creta e o seu avô arqueólogo que, de facto, havia enlouquecido ali; imagem que ficara marcada no seu imaginário e que passaria a filme.
Este seu primeiro filme é interessante porque expande a ideia da curta Die beispiellose, na qual a acção deve ser mantida a qualquer custo para evitar a loucura. Aliás, a primeira metade de Lebenszeichen dá-nos este sentido meio desconexo no qual os soldados procuram entreter-se e encontrar pequenos objectivos de acção, sejam eles pintar portas, construir máquinas para apanhar baratas ou decifrar inscrições gregas antigas. Mas este interesse pela acção desdobra-se no lado de cá da câmara e é aqui que ele se torna, quando a mim, mais interessante. Os “sinais de vida” do título em português são simultaneamente os típicos “sinais do caos” das rodagens herzoguianas que começaram aqui. Herzog conta que pouco tempo antes de começar a filmar deu-se um golpe de estado na Grécia e todas as autorizações de rodagem foram canceladas e os meios de transportes paralisados. Além disso, a filmagem teve de ser adiada por 6 meses devido a um acidente com Peter Brogle, equilibrista, que partiu um osso no calcanhar. O realizador conta ainda que o exército queria proibir as rodagens por causa do fogo de artifício que poderia ser confundido com armas em tempos de guerra…
Enfim, aquilo que passaria nos anos seguintes a ser o novo normal, como se se pudesse dizer que o próprio Herzog montaria em torno dos seus filmes esta máxima de superação dos seus próprios limites, uma máquina de acção, hiper-resistente, que, confrontando a realidade, adia sistematicamente a posição de cedência, de hesitação, de inactividade. Posições estas que fariam de Herzog um espectador louco e adormecido e não aquilo que sempre quis ser: um artesão lúcido e musculado. Como um dos culturistas de Herakles, primeiras imagens que escolheu para abrir a sua Obra.
Mas…
Mas… Tudo isto é imediato. E no tempo, ao contrário do espaço, só nos conseguimos mover numa só direcção. Esta é um dos pensamentos que podemos encontrar em Iluminacja (Iluminação, 1973) filme do polaco Krzysztof Zanussi que venceu o Prémio Fipresci e o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno. O protagonista é Franciszek Retman (Stanislaw Latallo), um jovem estudante que, sendo bom a todas as disciplinas, resolve estudar física. Zanussi fez um filme acerca desse trajecto unidireccional que é a passagem pela universidade para a idade adulta, um trajecto cuja “ansiedade moral” – é esse o lugar comum com que se descreve o universo do cineasta polaco do pós-guerra – pressupõe uma busca do conhecimento, uma vontade de “iluminação”, mas também uma colocação estratégica no espaço de uma Polónia dominada pelo comunismo e pelas diferentes expectativas que se esperam de um jovem inteligente.
Ao contrário do herói do filme de Herzog, cuja doença é a inacção, o físico de Zanussi padece do inverso: é a acção, em toda a sua irreversibilidade, que o vai tornando mais angustiado. Franciszek não quer por isso escolher uma especialidade durante a faculdade e são os eventos da sua vida que parecem puxar a acção adiante. Nomeadamente, a gravidez da sua companheira, facto que o faz interromper os estudos. O realizador polaco constrói este mundo de potencialidade – em que o ser humano é destituído de qualidades quando se submete a uma experiência de vida, quando, como diz o protagonista, “se intervém de forma tão brutal no material base da alma”. Por isso, a sua mise-en-scène é a da construção da cena a partir de um espectador expectante. Um Franciszek que surge frequentemente enquadrado longe da acção (entre frames de janelas, cantos de sala, portas), cujas lentes grossas dos seus óculos observam as cenas decoupadas através de montagens rápidas de detalhes impressionistas, mosaicos de imagens servidos com uma banda sonora atonal.
A vida do protagonista de Iluminacja vai avançando de momento em momento, com inserts dos documentos da sua formação, com sequências de conversas filosóficas acerca do papel da física, da ética das experimentações científicas, da capacidade de progresso da sua profissão. A realidade impele o herói às diferentes acções, mas qualquer uma destas impõe essa ansiedade da escolha do melhor caminho: ciência ou religião, vida profissional ou pessoal, lentidão ou velocidade, país natal ou estrangeiro, sujeição ou não das cobaias às glórias do avanço científico. E ainda havia o problema da bomba atómica, questão de físicos, assunto de Humanidade toda.
Ao concluir a comparação improvável convém ter noção que Lebenszeichen é uma obra de começo e que por isso ele tende a falar de forma vociferante e a explodir-nos na cara: é o já referido momento dos fogos de artifício no qual Stroszek resolve “atacar” a cidade a partir da fortaleza onde se encontrava em recuperação. Já Iluminacja é uma obra mais madura (Zanussi realizava desde o final dos anos 50) e contém nela toda a inquietude em tensão. No final, o jovem físico à beira de chegar aos 30 anos é-lhe diagnosticada ansiedade, já com alterações nas artérias coronárias e o médico sugere-lhe começar a viver menos intensamente. Uma doença de acção e um apelo ao remédio da inacção. Na cena final Franciszek surge sorrindo, imóvel, na água de uma praia com a sua mulher e filho. Um final de stasis, oposta à explosão herzoguiana.
Colocar estes dois filmes lado a lado deixa-nos ver uma dada geometria da vida. Quando a indolência ataca explode-se do centro para toda a parte, a tensão acumula como uma bomba cujos estilhaços e suas trajectórias serão essas acções de substituição. Quando é a actividade que corrói, a explosão ocorre dentro, desligam-se aos poucos os mecanismos, desaceleram-se os ponteiros, espera-se que o fogo de artifício não rebente. Que apague nas águas doces ou salgadas da improdutividade.