“Isto é um exagero!” A personagem de Vince Vaughn deixa escapar a frase perto do fim, quando já parece irreversível o encadeamento de “unfortunate events” que culminam num gunfight digno de Sam Peckinpah. Comecemos então não pela expressão, mas pela qualidade do texto propriamente dito: a afirmação da personagem irrompe de uma voz, indolente, mecânica e resignada, que perpassa todas as personagens deste filme. Parece que todas elas estão cientes do seu destino comum tingido pela tragédia. O realizador S. Craig Zahler é romancista, foi outrora jornalista e alguém que se iniciou nas lides do cinema como argumentista, do filme de terror The Incident (2011). De facto, a escrita aqui é trabalhada até à última silaba, sendo que, especialmente neste seu filme, o argumento é o principal cimento sobre o qual vamos sendo arrastados – pés ao alto, cabeça no chão – com pouca ou nenhuma piedade.
Sente-se “a voz” do “autor” em cada fala, num universo fílmico reduzido ao essencial – interpretações narcotizadas (bressonianas), gestos mecânicos, sets despojados e, pormenor importante num filme americano, não há música extradiegética na banda sonora. Todo este cuidado com a métrica – a própria musicalidade da escrita – remete-nos para os densamente escritos e encenados set pieces desse grande writer director chamado Quentin Tarantino – alguém que, quanto a mim, já vai beber aos melhores escritores de diálogos do cinema americano, mais concretamente aos filmes de Billy Wilder e Ernst Lubitsch.
Posto isto, Zahler está na companhia dos melhores e a sua técnica não vai ser objecto de crítica aqui até certo ponto ou será somente no sentido em que o realizador se vai deixando embriagar com as suas próprias capacidades, acabando por ceder a um exercício de bazófia cinematográfica. Virtuosismos de escrita e de realização com vincada marca de autor – a alta pretensão não começa apenas no título literário, Dragged Across Concrete (Na Sombra da Lei, 2019). Esta é uma tramada exibição de sofisticação formal, porque, se ao invés de olharmos para o que o filme é, olharmos para o que filme procura fazer, rapidamente percebemos como esta obra vai sendo devorada pela sua bem aguda imoralidade. Uma analogia: este filme de Zahler é como um fulano que gosta de bons fatos, boa comida, leu todos os clássicos russos, mas come de boca aberta, arrota à mesa e cospe no chão.
A imoralidade de Dragged Across Concrete resulta de uma relação desonesta que o filme estabelece connosco, espectadores. Comecemos pela dimensão maquinal, precisa e “sempre inspirada”, da escrita, pelo ritmo das falas de um elenco cujas interpretações estão sincronizadas pelo mesmo relógio. As perto de três horas deste filme servem a escrita, ou seja, não é a escrita que está ao serviço deste tempo que despendemos para saber até onde irá a trama de dois “bad lieutenants” – os buddies encarnados por Vince Vaughn (surpresa bem agradável) e Mel Gibson (a atitude e tiradas racistas estão ali para nos confundirem com a verdadeira face do protagonista de Mad Max?) – que decidem ganhar uma boa maquia por fora, “na sombra da lei”.
Um poder cinemático utilizado em perfeito desprezo pelo mundo das personagens/do espectador e subordinado a um exercício desumanizado de vaidade e a uma muito cheia de si vanglória de mandar.
O filme – vamos percebendo à medida que avança no seu ritmo lânguido – está ao serviço do seu próprio virtuosismo de escrita e de uma “voz” (como aquela do Big Brother) que manda em tudo e que pode tudo, por vezes de modo cruel e implacável. Isso acontece na sequência chocante em que acompanhamos a história de uma mãe que não consegue ir trabalhar enquanto não der mais um beijinho ao seu bebé. Zahler desenrola esta sub-narrativa com a mesma lentíssima progressão dramática e a estranha sensação de desajuste dramático que contaminam o universo do filme. Perversa verificação aqui, de índole mais político: na boca destas personagens, ou desta “grande personagem” que é o filme (que esmaga tudo e todos, até uma eventual centelha de moralidade), as palavras doces soam-nos insultuosas ao passo que as palavras rudes (e racistas) soam-nos doces.
A história do bebé culmina numa cena de brutal desumanidade. Pior: este momento chega para elevar a um outro patamar o gesto exibicionista, uma vez que fá-lo subir – isto é, descer – à mais reles e pornográfica exploração emocional. A partir deste instante, fica claro ao que vem Zahler. As suas intenções tornam-se duvidosas aos nossos olhos e a sua indiferença c(l)ínica quanto ao destino das personagens transforma-se em matéria para um xadrez – sim, jogado sempre com entediante alto virtuosismo – do qual já não queremos fazer parte.
A propósito da abjecta história da mãe e do bebé, recordo as palavras de Alfred Hitchcock na célebre entrevista concedida a Truffaut, a propósito da igualmente chocante sequência do miúdo e da bomba em Sabotage (À 1 e 45, 1936): “Making a child die in a picture is a rather ticklish matter; it comes close to an abuse of cinematic power.” A frase de Hitchcock coloca o realizador numa posição moral de alta responsabilidade. Ele tem em mãos o poder de nos oferecer vidas que, por momentos, e vicariamente, tomam conta – e suplantam – esta nossa que se desenrola do lado de cá, fora do ecrã. A violência maior de Dragged Across Concrete radica no uso abusivo desse “poder cinemático”, desse jogo que estabelece com as nossas emoções, não sabendo resistir à sua – de facto, a espaços impressionante – sofisticação formal. Em certa medida, o “olhem para o que posso fazer e até onde posso ir” passa, nessa altura, a ser a única coisa que – parece-me claro – governa a experiência deste longo filme. Tudo deixa de afectar ou ter razão de existir, sem ser num texto cheio de argumentos raivosos e odiosos impecavelmente redigido. Zahler deixa-se embriagar com as suas capacidades – reais, verificáveis, mas pouco substanciais – e com as suas grandes referências cinéfilas e literárias – estará aqui, em potência, uma espécie de Nicolas Winding Refn de baixos tons, low key? Esperemos que não.
Por exemplo, o seu título anterior, e já filme de culto, Bone Tomahawk (A Desaparecida, o Aleijado e os Trogloditas, 2015) não exibia metade destas capacidades – a tal notória sofisticação de escrita e mise en scène – mas era muito mais honesto e conseguido (vide a hawksiana personagem do “Old Man” interpretada por Richard Jenkins) do ponto de vista da dramaturgia – dos tais usos da nossa empatia pelas vidas dos outros, por todas essas existências vicárias no ecrã. Dragged Across Concrete é um filme poderoso de um ponto de vista estrita e tecnicamente cinemático. Pena que esse poder seja utilizado de forma tão abusiva e… “troglodita”, em perfeito desprezo pelo mundo das personagens/do espectador e subordinado a um exercício desumanizado de vaidade e a uma muito cheia de si vanglória de mandar.