Aqueles que dizem que Robert Pattinson interpreta um astronauta ou um prisioneiro chamado Monte numa estação espacial em High Life (2018) estão a ser, a nosso ver, redutores. Certo, conhecemo-lo em missão no espaço sideral, o que justifica o primeiro termo, e trata-se de um condenado à morte que escolheu dar o corpo à ciência, o que justifica o segundo. Mas se olharmos para o seu apego firme à castidade, para a forma como se guia num código de conduta auto-imposto que o faz ser mais lúcido, continente e sagaz do que os outros prisioneiros, para o instinto protector que irradia junto do género oposto, qual paladino de outrora, Monte revela-se mais do que à partida aparenta ser. É por isso que olhamos para ele e vemos evocado Galahad, o cavaleiro da Távola Redonda cuja pureza espiritual se encontrava alicerçada na sua virgindade, o que acabou por levá-lo ao encontro do Santo Graal. Para nós, Monte é então isso, Galahad a zelar pela ordem de Solaris.
Mas que importância poderia ter alguém reminiscente da personagem da mitologia arturiana num tempo futuro? É o que ele representa. Se aquela estação espacial é uma cadeia, há necessariamente o confronto com a solidão, com o desespero pela intimidade humana que só se vê apaziguado facilmente pelo onanismo ou barbaramente pela violentação. Ao manter um comportamento ascético num ambiente onde os impulsos sexuais predominam ao ponto da brutalidade, Monte revela a sua nobreza, força e resiliência moral. Monte é um estranho naquele grupo, um outsider como os que percorrem toda a obra de Claire Denis, seja a adolescente virgem na festa de engates do belíssimo US Go Home (1994), a imigrante lituana incapaz de falar francês na Paris de J’ai pas Sommeil (1994), ou a francesa no meio da guerra civil africana de White Material (2009). É por isso que, enquanto todos procuram algum tipo de conforto na infame “fuckbox”, Monte refugia-se naquela estufa edénica, um reduto espiritual onde predomina a serenidade e a vida. High Life é, em suma, não um filme de ficção científica em torno da gravidade (ou da falta dela), mas sim da gravitas, do apego à honra, ao dever, aos valores que percorrem a moralidade de um homem digno, mas espiritualmente só.
É um cinema de ritmo, textura e atmosfera, onde o corpo humano existe como grande questão filosófica.
Como sempre em Denis, trata-se de um filme essencialmente lacónico, somático, mais sensorial do que narrativo, sacrificando legibilidade em prol da atmosfera, preferindo trabalhar elipses, cores e texturas. Denis olha para o cinema numa perspectiva musical, com o ritmo dentro e entre as imagens a encontrarem uma coreografia emocional pela apresentação de membros, rostos, olhares, roupas e cabelos de forma sensualizada, fazendo de cada filme uma autêntica sinfonia visual de corpos. É por isso que a sua obra é feita de planos fechados, de poses e gestos, de olhos dirigidos para um fora-de-campo desconhecido, de mãos a acariciarem cabelos soltos, de cabeças ao encontro de peitos e dorsos, num jogo visual íntimo e harmonioso na forma com que se encanta pela topografia da pele, seja coberta ou despida. É um cinema de ritmo, textura e atmosfera, onde o corpo humano existe como grande questão filosófica. Questão filosófica essa que talvez nunca tenha sido tão central para Denis como aqui.
Falemos na personagem de Juliette Binoche, a médica que usa os prisioneiros como cobaias para as suas experiências reprodutivas. Alguns dirão que a cena em que ela usa a “fuckbox” é escusada. Nós dizemos que é o coração do filme inteiro. High Life é, reiteramos, uma alegoria sobre o desespero pela intimidade humana, uma meditação alusiva do lado destrutivo da libido humana em ambiente de clausura. É por isso que Denis filma essa cena da mesma maneira com que filma o Espaço lá fora: há apenas o escuro, o vazio, o nada. Trata-se de um momento simultaneamente frio e violento, onde o calor do corpo feminino está ausente para predominar uma visão asséptica e crua da manifestação das pulsões mais primitivas. A personagem de Binoche, afinal, sente-se tão atormentada pelo remorso de ter assassinado intencionalmente os filhos e o marido, que só nesta caixa encontra um espaço de exorcização temporária da culpa, que só no refúgio perecível do orgasmo mecânico encontra o esquecimento. Mas é também em Binoche, nomeadamente na forma como faz daquelas experiências com os cativos o seu propósito existencial, que vemos espelhada as intenções de Denis: falar da possibilidade de encontrar num meio marcado pelo ódio, pelo crime e pela morte, o milagre da vida.
Para concluir, refiramos o final que, como aquele inesquecível plano que acompanha Monte a ensinar a filha a andar, não nos deixa de parecer das coisas mais bonitas que Denis já filmou. Depois da morte da tripulação, depois de anos sozinhos à deriva no Espaço, depois de terem, enfim, cientes e com o pensamento cristalizado de que estão totalmente sós e inalcançáveis à civilização, só duas frases, dadas da maneira mais estóica imaginável, precedem o que Monte e a filha farão de seguida, ao estarem diante daquele buraco negro que tudo absorve. “Shall we?”, “Yes”. É um convite para a morte partilhada ou para simplesmente verem o que está do outro lado? O que quer que seja, sabemos, tal como eles sabem, que aquele é o local que marca o término desta viagem, um lugar remoto do Universo onde encontram, por fim, paz, absolvição, liberdade, com apenas as estrelas como testemunhas. Mais do que isto nunca importará. Pelo menos, no cinema, nunca importará.