Vous ne regarderez pas la caméra. Sauf lorsque que l’exigera de vous.
Para a compreensão da obra e percurso artísticos de Marguerite Duras, revela-se imprescindível a análise da ligação que a romancista francesa nutriu com a Sétima Arte. O argumento que assinou para Hiroshima mon amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959) e as adaptações fílmicas dos seus romances autobiográficos O Amante ou Un barrage contre le Pacifique, por nomes tão distintos como Jean-Jacques Annaud, René Clément ou Rithy Panh, são habitualmente os mais citados em notas biográficas, paralelamente às suas casuais incursões pela realização [Nathalie Granger (1972) ou India Song (1975), por exemplo].
Sobre Marguerite Duras enquanto cineasta, devem-se sublinhar os trabalhos experimentalistas que desenvolveu nas décadas de 70 e 80, os quais, amiúde, surgem com menor destaque no seu perfil filmográfico. Nesse contexto, L’homme atlantique (1981) será, provavelmente, o filme de Duras de maior impacto, formal e intelectual, no modo como os limites do cinema e da literatura são confundidos, extravasados e, em última instância, fragmentados.
Partindo de uma narração, serena mas firme, da própria Marguerite Duras, e justapondo outtakes de outro filme da sua autoria – concretamente, Agatha et les lectures illimitées (1981) – com um ecrã maioritariamente a negro como principal elemento visual, L’homme atlantique salienta, decisivamente, a autoridade da palavra face à imagem. Tal propósito fica imediatamente enunciado nas primeiras frases do filme: “Não olharás para a câmara. Excepto quando tal vos for exigido”, um acto de “reivindicação preemptiva” que situa o espectador num território que quase se poderia apelidar como cine-literário. Por outras palavras, a primazia do ecrã a negro, evidenciando a prosa de Duras (que seria, posteriormente, adaptada e editada em livro com o mesmo título), resulta num ensaio – raro mas perfeitamente conseguido – que tenciona “filmar” o texto escrito, sonegando narrativa, protagonistas e imagens enquanto constituintes primárias da arte cinematográfica.
A “treva” da imagem é a única e preponderante representação estética em L’homme atlantique.
Nesse sentido, apoiamo-nos ainda na opinião de Joana Ascensão (conforme a folha de sala redigida aquando da exibição do filme, em Março de 2010, pela Cinemateca Portuguesa) de que a ausência de imagens descortina um “trabalho em que Duras se esquiva à representação, não pelo negro ou pelo uso de imagens previamente filmadas, mas pela opção da leitura de um guião de um filme inexistente em detrimento da sua realização, é aqui, através do negro, que essa recusa da representação pela imagem atinge a sua máxima expressão”. Concluiu-se, portanto, que a “treva” da imagem é a única e preponderante representação estética em L’homme atlantique.
Assim, as emoções do espectador centram-se no conteúdo que a voz off de Marguerite Duras encerra. Na sua prosa, aborda-se amor e omissão (nas poucas imagens efectivadas pelo filme, ganha “protagonismo” a figura de Yann Andréa, o seu último companheiro), memória e observação, intimidade e morte. Tematicamente, e em paralelo com este estudo sobre as fronteiras do cinema e da literatura, L’homme atlantique revela-se como a elegia de uma ligação romântica finda e ausente – não será também o negro da imagem uma metáfora dessa intenção? –, perpetuada num filme infundido por melancolia e inquietude pessoais.
De modo análogo, este “mecanismo” estético pode ser observado em Les mains negatives (1978), um travelling pelas ruas da madrugada de Paris, formando-se um double bill que, porventura, ajudará a esclarecer o trajecto fílmico que Marguerite Duras sempre demonstrou reticência em clarificar: “O problema é perceber o porquê dos meus filmes. Todas as razões que arranjo há anos são imprecisas, não consigo percebê-lo claramente. (…) Talvez seja o desejo de fazer ‘escritos colados’ sobre imagens. Ou talvez seja, simplesmente, o volume do cinema que me atrai, o da sala de cinema, esse ponto de convergência”.
Les mains negatives e L’homme atlantique são exibidos no dia 29 de Julho, às 21h30, na Cinemateca Portuguesa, no âmbito do ciclo “A Noite”.