Conversation with Fritz Lang by William Friedkin (1975) é o resultado de dois dias de entrevistas do cineasta americano, em Fevereiro de 1975, no ano anterior à morte de Lang. Na primeira parte do documentário editado, a conversa passeia-se pelo inicio do percurso de Lang, pela sua participação e consequente fuga da primeira guerra (em 1918) e pela aproximação ao cinema, no encontro com Erich Pommer e a subsequente escrita de guiões. No contexto de uma Alemanha devastada pela guerra, Lang assume os males e os demónios sociais como protagonistas dos seus filmes, na antecâmara da sua extensa filmografia em Hollywood, que nunca se desviou das questões de justiça, da lei, da ética e da pena capital, de protagonistas criminosos e dos seus cúmplices. Lang afirma que nunca mostrava actos de violência, pois acreditava que seria mais poderoso o público construir as acções, tornar-se seu colaborador; depois, quando falavam de M (Matou, 1931), à pergunta de Friedkin se o filme procurava desenvolver uma empatia entre o público e o personagem de Peter Lorre, que se supõe não controlar as suas acções, Lang reflecte para responder com uma pergunta: “acha que a maior parte dos homicídios são pensados, desde o inicio, com a intenção de matar alguém?”. Lang atesta que frequentava Alexanderplatz, devido ao seu interesse, que para o espectador soa a fascínio, pelo crime e pelos criminosos (foi por lá que recrutou a plateia inquiridora da cena final de M), e aqui, como o assunto desta crónica são as caçadas, vem-nos à cabeça a suspeita, que corria na época, de que Lang, com a ajuda de Thea von Harbou (sua companheira e colaboradora), teria assassinado a primeira mulher, Lisa Rosenthal.
Mas, o melhor da conversa fica entregue à narração da chamada de Lang ao Ministério da Propaganda de Goebbels, que terá ocorrido em Abril de 1933. Desde o princípio, do tipo de pavimento, às paredes brancas, aos passos que ecoavam, às barreiras ultrapassadas até chegar ao gabinete, Lang acumula descrições com uma minúcia notável, como quem escreve um guião, enriquecido com o passar do tempo – segundo rezam as crónicas, desde os anos 40 que Lang recontava a história, quando participou do esforço de guerra em Holywood, com a realização de filmes encostados à propaganda. Lang estava convencido de que fora chamado devido a O Testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, 1933), por ter posto na boca do protagonista um dos slogans do terceiro reich – “o cidadão comum tem de destruir as autoridades que ele próprio criou e nos seus destroços construiremos o nosso reino para mil anos” –, mas Goebbels ter-lhe-á dito que o Führer tinha visto alguns dos seus filmes (sem especificar quais) e achava que seria ele quem lhes daria O filme nacional-socialista.
Lang, que nesta altura estaria alagado em suor, descreve o gabinete do homem da propaganda, com especial ênfase para as quatro ou cinco janelas altas que permitiam avistar a rua e é aqui, depois do introito, que arranca o sofisticadíssimo exercício de suspense, uma caçada pautada por um relógio que estaria no topo de um poste da rua: enquanto Goebbels reafirma a vontade do terceiro reich de que ele liderasse todo o cinema alemão, Lang matuta na forma de sair dali antes do banco fechar, levantar algum dinheiro e fugir do país; pelo meio, o cineasta confidencia ao ministro que os avós maternos eram judeus, apesar de a mãe ter nascido católica, ao que Goebbels terá respondido: “Sr. Lang, nós é que decidimos quem é ariano”. No fim da conversa, com a promessa de Goebbels de que telefonaria nos próximos dias, a intriga aditivada de suspense continuaria fora dali, com a Gestapo a vigiar a casa do cineasta (no que seria afinal um exercício da policia do estado), uma chegada ao comboio em cima da partida, com uma visita a Thea pelo meio, para lhe levar umas joias. A minúcia das descrições estende-se também às pessoas-personagens que com ele se vão cruzando, como a agitação do criado a sinalizar o perigo, um permanente “e se”, que lança expectativas ao espectador, um ou outro MacGuffin, que Lang vai extinguindo enquanto prepara o próximo: na fronteira com a Bélgica havia uma inspecção das bagagens, nesse dia empreendida pela Gestapo, sendo que Lang, numa extremidade da carruagem, ia seguindo o percurso da inspecção através dos sons; ele começou, então, a ressonar quando os ouviu chegar ao compartimento ao lado e a policia, inexplicavelmente, não entrou na sua carruagem-cama. Na manhã seguinte, Lang estava em Paris.
A câmara avança vagarosa na floresta até que encontra as pegadas de um homem, para pouco depois enquadrar a figura do caçador. O homem coloca-se na posição de atirar, deitado, ajusta a mira para a distância, e enquadra Hitler. Ele dispara, ouve-se um clique seco (a arma não tinha munições) e acena enquanto sorri, como se tudo aquilo fosse um jogo, um episódio do desporto da caça. Mas, depois de uma pequena hesitação, o homem coloca uma munição na carabina e volta à posição, onde é impedido de atirar por um soldado alemão e depois detido pela Gestapo. Man Hunt (Feras Humanas, 1941), situa a sua acção pouco antes da guerra, algures na Alemanha, sendo um dos primeiros filmes de propaganda anti-nazi, quando os EUA ainda não tinham decidido entrar no conflito, meses antes de Pearl Harbor, filme que estaria destinado às mãos de John Ford (que, entretanto, se envolveu noutros projectos), e teve como argumentista Dudley Nichols, habitual colaborador do irlandês.
Será com o alfinete da boina, em forma de seta, que associada a um arco a presa voltará a ser o caçador, que emoldura todo o filme na importância atribuída ao simbolismo e à iconografia em detrimento da verosimilhança: a arte e os seus códigos em oposição às rotinas da narrativa.
A segunda sequência introduz-nos no duelo entre o caçador, o britânico Alan Thorndike (Walter Pidgeon) e o oficial nazi, interpretado por George Sanders, num espaço que parece decalcado do gabinete de Goebbels descrito por Lang – grandes janelões, altas e quase despidas paredes brancas –, na antecâmara de dois mundos em disputa, o fleumático e humanista britânico em oposição ao nazi, que não hesitará em destruir para criar um mundo novo. Com um tabuleiro de xadrez no centro de grande parte dos planos, cada um dos homens move os seus peões, com uma obsessão pela presença da terminologia da caça em cada uma das jogadas, principalmente na boca de Sanders (que partilha o fascínio da caça com o oponente), conhecedor das proezas de Pidgeon e que lhe atribui um apurado faro, uma destreza na perseguição de animais astutos e uma capacidade rara de se mover na floresta como se fosse transparente.
“Acha que a maior parte dos homicídios são pensados, desde o inicio, com a intenção de matar alguém?” – a frase volta-nos à cabeça quando em resposta à acusação de que estava ali para assinar Hitler, Pidgeon responde que não, que nunca pretendeu matar, apenas verificar se era possível, pois procurava o mesmo de sempre, o perigo e o divertimento da caça: o objectivo é ter a presa como alvo, não matá-la. Com o espectador um passo à frente do nazi, decorrido da repetição da acção a que assistimos na primeira sequência, o jogo de estratégia prossegue, com uma escultura, uma figura trespassada por setas, em fundo: Sanders procura validar o objectivo de Pidgeon, ao caçador só lhe faltava a maior presa, o mais perigoso de todos os animais; em troca da liberdade, o britânico é convidado a assinar um documento, onde confessaria a intenção de assassinar Hitler, em nome do governo britânico. Ele recusa e é espancado na sala ao lado, fora de campo, concretizando a quase abjecção de Lang em mostrar actos de violência, e só veremos o corpo de Pidgeon a deixar um rasto, como uma presa ferida.
Lang começa a esticar o verosímil quando Pidgeon, lançado de um penhasco, se salva e desaparece no lamaçal da floresta, território de caça onde abandona a condição de predador, tal como o grande caçador Mitchum em Home From The Hill (A Herança da Carne, 1960) – ver crónica do mês passado – , mas se no filme de Minnelli há uma diluição do tempo que abarca mais de 200 anos, aqui a urgência concentra o tempo num período preciso, o que antecedeu a segunda grande guerra. O britânico passará o resto do filme a enfiar-se em tocas, catacumbas e túneis, como um animal ferido e acossado, a quem também será privado o direito à identidade. Consumada a fuga, Pidgeon encontra refugio em Londres, com o auxílio do nevoeiro das docas e da toca de uma mulher, de Jerry, interpretada por Joan Bennett, uma rapariga simples, que o espectador depreende viver da prostituição, e que foi um dos elementos que opôs Lang ao produtor Darryl F. Zanuck, que pretendia retirar o controlo da montagem ao cineasta, por questionar a credibilidade e verosimilhança de grande parte do filme, assim como temia problemas com o Joseph Breen e o Código Hays devido à brutalidade com que são retratados os alemães (num período onde os americanos ainda cultivavam a ambiguidade relativamente ao que sucedia na Europa) e à construção do personagem de Bennett, o que terá levado Lang a filmar algumas cenas à porta fechada, com uma equipa mínima. Nesta primeira colaboração de Lang com Bennett, a actriz compõe, então, um personagem em oposição aos que fará para Lang pouco depois, em The Woman in the Window (Suprema Decisão, 1947) e Scarlet Street (Almas Perversas, 1948), filmes gémeos em que Bennett arrasta G. Robinson para a desgraça, num arquétipo da mulher fatal de Holywood.
Nos arrabaldes de Londres, enquanto a Alemanha invade a Polónia, a floresta assistirá ao duelo final entre o britânico e o nazi, onde os papeis de caçador e presa se disputarão: o britânico constrói o covil, um espaço de resistência ao inimigo, selado por uma pedra, com o auxílio de uma trave de madeira; Sanders copia-lhe o processo pelo exterior, o jogo de xadrez continua. Será com o alfinete da boina de Bennett, em forma de seta, que associada a um arco construído por Pidgeon, um regresso ao expediente da caverna, a presa voltará a ser o caçador astuto e preciso, que emoldura todo o filme na importância atribuída ao simbolismo e à iconografia em detrimento da verosimilhança: a arte e os seus códigos em oposição às rotinas da narrativa. No epílogo, imagens de arquivo da guerra fazem eco da brutalidade primitiva, do arco e da flecha, a preceder o regresso à floresta de Pidgeon, como soldado, mas a perspectivar a fuga, como Lang fixado no relógio que se avistava do gabinete de Goebbels.