“A arte é sobre fazer escolhas, tomar decisões.” Esta singela frase pertence ao cineasta de origem egípcia e naturalizado canadiano, Atom Egoyan, um dos convidados da 2ª Edição da Summer School, organizada pela Escola das Artes da Universidade Católica no Porto. Depois de, em 2018, o evento ter sido consagrado à Cinematic Art e ter recebido nomes como Apichatpong Weerasethakul, Haden Guest, Filipa César, Salomé Lamas, João Salaviza ou João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, este ano a organização parece ter assumido expressamente a intenção de abrir a relação do cinema com o universo da arte. Aliás, o subtítulo do conjunto de workshops, palestras e projecções era precisamente esse Art & Cinema. É nesse sentido que podemos afirmar que todos os artistas presentes na edição deste ano têm uma relação – chamemos-lhe, multidisciplinar, à falta de melhor termo – com o cinema.
Julião Sarmento, sendo artista plástico e pintor, desde os anos 70 que utiliza a imagem em movimento como matéria de criação. Aliás, a exposição inaugurada no primeiro dia da Summer School, com curadoria do também Director da Escola das Artes, Nuno Crespo, é precisamente dedicada às obras fílmicas de Julião. Ana Vaz é artista visual brasileira, além de cineasta, sendo que a imagem em movimento é para si o centro de uma “inquietação” que se desdobra em múltiplos objectos e perspectivas, desde a ecologia, a etnografia, a filosofia, a linguagem ou a desconstrução de certas ideias reificadas sobre a percepção do outro. João Maria Gusmão e Pedro Paiva são uma dupla de artistas que, trabalhando com a imagem em movimento, partem muito mais da literatura e filosofia do que do cinema, como adiantou o primeiro no derradeiro dia do evento.
Mesmo os convidados ditos realizadores de cinema – Atom Egoyan e Todd Solondz – não destoam desta abordagem mais híbrida e porosa com a sétima arte vai sendo coada, refeita e repensada. Egoyan, entre curtas e longas, conta já com 40 filmes no currículo, mas também múltiplos trabalhos de encenação teatral, óperas, instalações, publicações e, até… 10 doutoramentos honorários. One man band, portanto, e muito longe daquilo que poderíamos nomear simplesmente: um homem do cinema. E assim mesmo também Todd Solondz, com uma carreira mais curta – como disse aos alunos, recusa-se a fazer como outros cineastas que fazem um filme para o estúdio e outro para ele – é também ele muito um homem da escrita. O norte-americano revelou que não gosta nada de filmar, pois é tudo um grande stress. Para Solondz, as rodagens são o preço que tem de pagar para que possa ver aquilo que escreveu transformado e clarificado em filme. Talvez nem sequer fosse necessário tê-lo admitido, pois quem olha para obras como Happiness (Felicidade, 1998) ou Life During Wartime (A Vida em Tempo de Guerra, 2009) percebe – pelo seu ritmo pouco marcado, pelo encontro e desencontro das personagens mais ou menos paranóicas, neuróticas e desesperadas – que elas são o resultado de um aturado trabalho de escrita. E que os filmes resultam dessa ligação (dessa acumulação) de um conjunto de situações dramatizadas.
Rewind até essa ideia do processo de tomada de decisões como o derradeiro modus operandi de qualquer arte. Isto porque esse parece-me ser um interessante fio condutor para um participante que durante 5 dias escutou, viu, criou, exercitou, ante a indicação, a batuta e visão de mundo de cada um destes grupos de artistas tão diferentes. No fundo, saber como os outros chegam a tomar as suas decisões, organizam o seu mapa mental para a produção de uma dada obra. Expormo-nos à elaboração dessa rede conceptual, intuitiva, racional, perceptiva é tudo quando podemos “aprender” da arte dos outros. É desse material que as inspirações são feitas.
Foi assim, no âmbito de uma parceria entre o À pala de Walsh e a Summer School, que durante os cinco dias do evento fui um desses participantes. Dessa intensa viagem deixo aqui imortalizado na pedra digital algumas das impressões que fui guardando pelo caminho.
No primeiro dia o maître à penser foi Julião Sarmento. O famoso artista português no seu estilo descontraído e, como se diz na minha terra, bem-falante, começou por sensibilizar a plateia de jovens artistas para a construção de um tempo linear no cinema. Mostrou uma curta de Claude Lelouch feita na madrugada de 15 de Agosto de 1976 em que conduziu, sem autorização, a alta velocidade por uma Paris que acordava, passando dezenas de sinais vermelhos e stops. C’était un rendez-vous (1976) é uma obra de juventude e rebeldia que mostra um sentido de economia temporal que os primeiros filmes devem/podem ter. Falou-se também do tempo metido no tempo real do cinema – a citação era óbvia, o supercut de 24 horas, The Clock (2010) de Christian Marclay – e depois fomos pelas instalações do campus universitário da Universidade Católica em busca de registar esse tempo tenso. O tempo da improvisação, ou do twist ou da performance. Descontracção, filme de arte, escrita rudimentar para um minuto.
Uma das facetas mais bonitas deste evento é que não são apenas os jovens artistas que se expõem ao pensamento dos colegas mais velhos de métier. Há também a preocupação em oferecer à cidade do Porto um conjunto de eventos culturais, que permite que a arte alastre pelos edifícios, pelos grupos organizados, pelos anónimos e desconhecidos, na sua capacidade de influência e provocação. Desta forma, os espaços da faculdade, mas também o Teatro Rivoli, a Casa das Artes, o Cinema Passos Manuel e o Auditório da Fundação de Serralves foram convocados para um programa que sempre fez acompanhar a exibição e projecção de obras com conversas em torno das mesmas.
Voltando ainda ao dia J, de Julião, é interessante pensar a sua proposta de trabalho com os estudantes em face do seu próprio trabalho com as imagens em movimento. Se Nuno Crespo propôs que se pensasse as suas obras numa esfera de contaminação audiovisual, onde o espaço da exposição permitisse relacionar/comparar/incluir/excluir dos olhos e dos ouvidos as diferentes obras expostas, não me parece menos verdade que cada obra em si evidencia bem a colocação de um dado problema que, para funcionar em tensão, em questionamento, é bem recortado do resto do que o rodeia. Por exemplo, num filme de 1 minuto e meio de 2011, Commercial Break, Sarmento brinca com as pausas e os silêncios nas transmissões dos telejornais em que não sabemos se a falha é técnica ou se vem aí um anúncio. Ou em Doppelgänger (2001) em que duas projecções em duas paredes em esquina fazem passar a narrativa de uma história à outra nessa continuação irónica da vida e dos duplos de cada um. E mesmo ECLISSEOTTOEMEZZO (1998), que foi projectado na sua integralidade no auditório da faculdade, no qual Sarmento colou a banda sonora do clássico de Fellini ao filme de Antonioni. Tudo obras que trabalham o questionamento, o confronto ou choque de uma questão simples. Sem desfocagem, como se a proposta exigisse um plano-sequência simbólico, uma continuidade que se arrisca a desfazer na exaustão, a sublimar na acumulação de choques.
O segundo convidado foi Atom Egoyan que, no final do dia, após horas de seminário, parecia a imagem viva e fatigada da entrega e da generosidade. Nas horas que tinha disponíveis, Egoyan teve a preocupação de habitar os espaços de fronteira e tradução entre artes e de nos explicar os problemas que teve de enfrentar nessas passagens. Falou-nos com pormenor das preocupações que teve em adaptar para cinema uma das suas peças favoritas: Krapp’s Last Tape (1958) de Samuel Beckett. Em como decidiu transformar a peça de um acto – sobre a memória, a passagem do tempo e a avaliação de uma vida e de um passado – num filme de uma hora com 9 planos-sequência. Os problemas também ligadas à gestão da fisicalidade do actor e do espaço confinado onde a acção se passa, a subtil relação a ter com os actores em termos de informação e sugestão de possibilidades, o tom da obra, as decisões ligadas a mise-en-scène numa arte que, mais do que no teatro, tem a possibilidade de dirigir e manipular a atenção do espectador.
Egoyan abordou também a passagem das tapes da personagem paranóica e solitária de Beckett para a sensibilidade cinemática e a fragilidade da película. Como resultado surgiu a instalação Steenbeckett (2012), inicialmente pensada para a Tate Modern e que prevê o desenrolar da película do filme Krapp’s Last Tape (2000). Assim como a exposição das suas entranhas, com o registo performativo, delicado e instável de um media que não apenas regista mas também possibilita a revisitação e reavaliação de uma memória como previsto no imaginário beckettiano.
Ainda sobre a relação com as artes de palco, Egoyan salientou um aspecto importante: nelas, o espectador tendo um foco menos dirigido é obrigado a assistir a tudo. No cinema, pelo contrário, a luta é pelo tempo. Ao contrário dos realizadores que o influenciaram, Alain Resnais, Andrei Tarkovsky ou Peter Greenaway, o cinema comercial não está interessado em fazer experienciar o tempo. Mas para Egoyan o desafio é “tentar criar um espaço de auto-reflexão”, uma abordagem muitas vezes prismática, de fracturas das diferentes linhas temporais. A sua marca passa por encontrar esse pequeno “a mais na verosimilhança”, um pequeno extra que tem de ser utilizado com habilidade. Pois, diz-nos, se for mal aplicado ou as pessoas se afastam ou não notam. E falámos dos exemplos das velas no plano em que pai e filha se encontram no estábulo em The Sweet Hereafter (O Futuro Radioso, 1997) ou dos aquários sujos num dos espaços de Exotica (1994). Como comentou Julião Sarmento [são amigos, planearam uma instalação juntos, Close (2001) para a Bienal de Veneza], numa discussão moderada por Guilherme Blanc, após a exibição pública de O Futuro Radioso, no Teatro Rivoli: “nos filmes do Atom nunca sabemos bem o que está a acontecer, as coisas permanecem num estado onírico, nada é exactamente o que parece”.
O terceiro dia foi o mais físico de todos, ou não fosse uma das questões de Ana Vaz exactamente essa: o apuramento da potencialidade de um cinema não feito apenas com o olho e o espírito, mas também um corpo que filma. Sob o signo de um não acreditar na ideia de mestre, numa noção de unschooling, Vaz e Nuno da Luz, artista na área do som e seu colaborador em alguns filmes, propuserem durante o tempo que tinham disponível um conjunto de exercícios nos jardins e arredores da Casa das Artes no Porto que se destinam a apurar os sentidos da observação e da audição. Entre eles, uma caminhada em grupo e em silêncio, uma outra de olhos vendados tendo como guia um companheiro de viagem ou ainda um coro colectivo baseado no excerto de um partitura de Cornelius Cardew. Um conjunto de actividades que visava extrair a carga da linguagem verbal, sua racionalidade e automatismos, muitas vezes fonte de entorpecimento da capacidade de ver e ouvir o mundo. E, por extensão, o Outro como parte daquele. Criar condições para nos deter no farfalhar da relva debaixo dos pés, na rugosidade dos troncos, nas formas de um pedaço de lixo junto a um contentor. Como dizia a Sophia de Mello Breyner, “e então o mistério das coisas estremece.” Foi desse estremecer que foi feita toda aquela manhã e tarde de sol.
O workshop terminou com o visionamento privado de um conjunto de obras experimentais que influenciaram o próprio trabalho de Ana Vaz. Por exemplo, Fake Fruit Factory (1986), de Chick Strand; Mutiny (1982-1983) de Abigail Child; Deep Sleep (2014) de Basma Alsharif; I’ll Remember You as You Were, Not as What You’ll Become (2016) de Sky Hopinka. Na sessão pública, apresentada e moderada por Carles Guerra, director da Fundação Antoni Tàpies e professor de arte contemporânea na Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, Ana Vaz mostrou algumas das suas obras. Como são os casos de Occidente (2014), Amérika: Bahía de las Flechas (2016), Há Terra! (2016), A Idade da Pedra (2013), ou os mais recentes – e baseados num trabalho de maior fôlego que prepara no Japão – Atomic Garden (2018) e Amazing Fantasy (2018).
Um observação muito interessante de Carles Guerra após a exibição dos filmes foi o facto de, ao contrário do expectável no cinema experimental mais tradicional, as obras de Ana Vaz estarem menos interessadas em problematizar ou refazer as materialidades do medium cinemático e mais envolvidas num retorno à narrativa. A experimentação dos seus filmes parece prolongar as reflexões teóricas de pensadores tão importantes como Bruno Latour, Judith Butler ou Donna J. Haraway, sobretudo no que implica uma desconstrução dos sistemas de poder e de hierarquia que, visíveis no pensamento ocidental, se espelham muito nas suas estruturas narrativas. Observar e contar a linguagem das coisas, mostrar diversas formas e modos de existência, de apresentação, de co-existência, por exemplo, a linguagem, o mundo, da pedra ou do copo. Em Occidente, a montagem de certas imagens chave – o olhar atento da empregada, o olhar descontraído e sorridente de Gabriel Abrantes, as louças vindas de longe, as aves exóticas, os monumentos – constroem um espelho ao mesmo tempo límpido e distorcido desta sedimentação histórica abusiva sob o qual nós ocidentais construímos amenamente as nossas vidas. Um filme poderoso pela forma como revela o detalhe, o ínfimo, que faz crescer a inquietação no seio do que conhecemos como certeza.
Como confessou a própria artista o seu é, portanto, um cinema experimental mas não para experimentar o cinema, mas para fazer outra coisa com ele. Um cinema feito com o corpo para dar forma a uma experimentação de não hierarquia. As obras não são as coisas mais importantes, refere, mas sim os processos colectivos de experimentação e de transformação dos sujeitos. Assim, existem momentos de vulnerabilidade, que não se esperam que sejam coeficientes, mas que tragam o oposto da clareza, que façam inverter o dado, habitar um certo estado de ansiedade. Um exemplo desta necessidade de inversão do pensamento está visualmente presente no acto de inverter a câmara em Amérika: Bahía de las Flechas. A câmara como uma flecha no lago salgado de Enriquillo, na República Dominicana, local hoje ameaçado pelas mudanças climáticas e que no no final do século XV recebeu Cristóvão Colombo com uma chuva de flechas.
Basta conversar uns minutos com o realizador Todd Solond para se perceber que gosta de ser engraçado e de provocar. Gosta de ir ao fundo das conversas, saber detalhes, fazer o seu interlocutor evitar generalidades, temos de explicar tudo, mesmo com o risco de cair no embaraço. Pensava nessa “estratégia de sociabilização” e a forma como casaria ou não com o seu cinema. E é interessante pensar nessa factura que o seu cinema “pagou”, numa sociedade, em muitos casos, de não ditos, de panos quentes, de generalidades que condescendem sem abraçar a diferença. O seu cinema sempre procura evitar isso e essa é a razão pela qual ele é o cineasta “irreverente”. Meaning: que aborda a questão da pedofilia, os meninos que não se conseguem vir, os abortos, as violações, a inexorabilidade para com as inocentes parvinhas, os suicídios por amor, ou os homicidas doidos e carinhosos. Mas creio que não o faz apenas por uma etiqueta de originalidade – como disse no workshop, ” isto aqui não é sobre ser o mais inteligente, é sobre o ter a melhor história”. Penso que o faz por aquilo que logo sentimos depois de um diálogo de dois minutos com ele: a sua frontalidade. No seu mundo, real e cinematográfico, todas as peças, pessoas, actos, pecados fazem parte de uma mesma circularidade da existência. E nessa circularidade, o pedófilo, o violador, as questões da sexualidade são abordadas sem nenhum tipo de preocupação julgadora. E o riso dos espectadores é sobre esse nervoso de esperar uma condenação moral e de ela nunca mais chegar…
Mas há mais a retirar dessa circularidade desierarquizada que é o mundo de acordo com a lente de Solondz. Para o norte-americano estas pessoas, tipos e acções não apenas existem, independentemente dos juízos que cada um faz sobre eles, como reivindicam, como qualquer um de nós, o direito ao protagonismo, à empatia, à comiseração. Solondz admitiu que uma das preocupações da sua arte é ensaiar a partir de uma margem qualquer e trazer essa margem mais para o centro, para uma ideia de normalidade sem questionamento moral.
O penúltimo dia com Solondz foi na sua estrutura semelhante ao inicial com Sarmento: reflexões iniciais, espaço e tempo para filmar/montar e novas reflexões. Contudo, o cineasta americano é um homem da narrativa. Nesse sentido, procurou transmitir a ideia de que o cinema vive da ideia de um dado protagonista que tem um certo objectivo, sendo a função do argumentista/realizador dramatizar essa luta pela qual o herói vai ultrapassando os seus obstáculos. Um filme que só tu podes fazer, mas que todos queiram ver, foi esse o mote aos participantes. E Todd, com os seus óculos coloridos, olheiras fundas e sotaque anasalado nova-iorquino parece um desses heróis. Que escreve para não ficar deprimido, que não acredita em exercícios fílmicos (só o filme em si é investimento que compensa o esforço), um homem que, como o próprio revelou, “se desviou de demasiadas balas”. Penso na figura de um clown triste e cansado, na forma como é tão eficaz na sua tragicomédia, no seu sonho destruído de ser um realizador de Hollywood, na visão desencantada ou realista do cinema: o caos controlado é a natureza do cinema, um equilíbrio entre a preparação rigorosa e a abertura ao acaso, uma sucessão de desastres.
No último dia os participantes tiveram a presença de João Maria Gusmão, que forma com Pedro Paiva uma dupla de artistas portugueses que trabalha junta desde 2001 e que já venceu o Prémio EDP Novos Artistas em 2005 e representou Portugal na Bienal de Veneza em 2009. Foi talvez o dia mais fascinante e intenso, quer pela abordagem conceptual de Gusmão às próprias obras, quer pela presença da historiadora e crítica de arte Sabeth Buchmann e pelo cineasta Rainer Ballembaum que acompanharam as sessões teóricas e debateram a obra dos artistas portugueses à noite em Serralves numa sessão pública intitulada “K7 Fantasma”.
Dois termos permitem enformar as questões teóricas que ocupam o trabalho de Gusmão e Paiva. Desde logo, o ideia de “eflúvio magnético”, retirada de uma passagem do romance de Vitor Hugo, L’Homme qui rit (1869). Trata-se de uma manifestação da natureza, aquando de uma tempestade, que permite abordar a questão do indescritível, daquilo que resiste à compreensão e comunicação. Este termo serviu de inspiração a uma colaboração com a galeria ZDB. Em 2008 surge o segundo termo – “abissologia” – no contexto de nova exposição na ZBD Abissologia: para uma ciência transitória do indiscernível, com curadoria de Natxo Checa. Abissologia funciona como um modelo ficcional ou a ciência que estuda o abismo. Este neologismo pode ser encontrado no romance de René Daumal, La Grande Beuverie (1939). Trata-se de habitar o paradoxo de contribuir para uma ciência do que não se pode habitar ou conhecer.
De uma certa maneira, os filmes que João Maria Gusmão foi mostrando – em 16 mm, sempre sem som, muitas vezes em super slow motion com captação de imagens em alta velocidade – criam ou dão a enxergar esse mundo abismado ou incompreensível. Tratam-se de momentos onde o idealismo dá lugar a um materialismo mais ínfimo, a fenomenologia de um mínimo visível, seja ele o estertor de morte de um peixe vaca (que nos faz perceber a proximidade dos seus movimentos com uma máquina) ou a saída de uma tartaruga da sua carapaça que, sem a devida contextualização, poderíamos pensar como o parto de um alien. Creio ser lícito dizer também que Gusmão e Paiva pretendem prosseguir com o seu trabalho de inquirição das potencialidades da imagem as discussões teóricas, as experiências práticas que, ao longo de séculos, foram sendo feitas por pensadores, filósofos, cientistas no sentido de descobrir um pouco mais sobre os fenómenos e as ilusões ligadas à visão. Como por exemplo, o filme Eye Eclipse (2007) no qual os artistas procuram demonstrar um eclipse de e através de cascas de ovo, dialogando com a famosa experiência de Descartes no qual este seccionou o olho de um touro para procurar compreender como se processava a visão.
Ainda um outro epicentro conceptual em desenvolvimento está ligado ao uso da imagem em movimento para uma “poesia espectral”, naturalmente, com influência de pensadores que trabalham a questão do espectro e do fantasma associado à noção de imagem, com Derrida à cabeça. Um dos filmes mais interessantes e impressionantes da dupla é Papagaio (2014), realizado em São Tomé e Príncipe. Estes filmam o Djambi, um ritual colectivo de cura, pelo qual os participantes têm de entrar em transe. Como nos explicou Gusmão, eles têm de morrer simbolicamente para poder reencarnar noutra forma, canalizar os espíritos dos mortos. O mais interessante é que os artistas percebem que a encenação é tão forte como a dimensão de crença e por isso filmam eles mas também colocam a câmara nas mãos dos possédés para que captem eles as imagens. Esse é precisamente um destes espaços/rituais indecidíveis, abissais, espectrais caros à arte de Gusmão e Paiva: o transe é a verdade mas a verdade tem de ser encenada.
Não falei ainda do lado de cá, mas falo agora: daqueles que durante esta Summer School tudo ouviram, fizeram e pensaram. Vinham de várias partes, portugueses, macaenses, israelitas, norte-americanos, peruanos, alemães, franceses. Uns artistas, outros estudantes. Uns voluntários, outros involuntários. E os curiosos, os tímidos, os divertidos, os com aspirações, os surpreendidos, os maravilhados… Ainda os almoços, os jantares, as cervejas, os passeios, as conversas, as piadas, as experimentações – na rua, no estúdio, no jardim, em frente ao computador – tudo numa espécie de ritual onde se entra um e se sai outro. Alquimia artística, transe de crescimento, tudo e nada, desde que haja vontade, atenção, amor.
*Um agradecimento especial aos curadores deste evento, Daniel Ribas e Nuno Crespo, sem os quais este texto não teria sido de todo possível.