Quando Ran (Ran – Os Senhores da Guerra, 1985) estreou na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Tóquio, Akira Kurosawa era simultaneamente um realizador de prestígio internacional e uma espécie de “dinossauro” com dificuldade em assegurar financiamento no Japão (o próprio filme era uma co-produção franco-japonesa). O seu triunfo – foi nomeado e venceu uma miríade de prémios – marcou uma viragem positiva e Kurosawa continuou a trabalhar mais desafogadamente. Ran tornou-se numa das suas obras mais conhecidas e reconhecidas e a sua reposição em cópia restaurada nos cinemas é uma excelente oportunidade para iniciar novas gerações de cinéfilos na filmografia deste grande realizador.
A palavra-caracter do título original, ran 乱, significa “caos” e o filme acompanha precisamente a transformação de uma ordem construída pela violência para o tumulto da sua dissolução. Livremente inspirado em O Rei Lear de Shakespeare bem como na história do daimyo (senhor feudal) Mōri Motonari que viveu no século XVI, Ran é um esplendor de luz e cor do início ao fim. Não é um filme completamente novo na obra de Kurosawa – há óbvios ecos do imediatamente anterior, Kagemusha (1980), bem como de Kumonosu-jō (Trono de Sangue, 1957), a sua adaptação de Macbeth. Mas é um pico de perfeccionismo, uma obra como que antológica.
No centro do filme temos as intrigas familiares em torno do clã Ichimonji. Hidetora (Tatsuya Nakadai), senhor de um vasto domínio, conquistado com grande brutalidade que aos 70 anos decide passar o poder ao primogénito, Taro (Akira Terao), e dividir os castelos entre este e o segundo e terceiro filhos, Jiro (Jinpachi Nezu) e Saburo (Daisuke Ryu), respectivamente. Em vez de uma união fraterna, o resultado são sangrentas lutas pelo poder entre o pai e os filhos e outros familiares: a mulher de Jiro, Kaede (Mieko Harada), depois envolvida com Taro; a esposa deste último, Sué (Yoshiko Miyazaki); o irmão dela, Tsurumaru (Mansai Nomura); e o pai da escolhida para se casar com Saburo, Fujimaki (Hitoshi Ueko). Também importantes são outras figuras que acompanham alguns dos intervenientes principais: Kurogane (Hisashi Igawa), comandante militar das forças de Jiro, que mata Taro e matará Kaede; Tango (Masayuki Yui), vassalo fiel de Hidetora; e Kyoami (Shinnosuke Ikehata/Peter), espécie de bobo da corte que ora diz duras verdades ora é um cuidador filial do velho tirano.
Hidetora pode surgir, à primeira vista, como um idoso frágil e demente a quem os filhos maltratam e cujo legado desbaratam. Mas cedo se torna óbvio que o “caos” que se desenrola ao longo de duas horas e quarenta é uma resposta à violência extrema com que cimentara a sua autoridade, nomeadamente ocupando ou destruindo territórios e matando os rivais, nada mais que os pais de Kaede e Sué. É precisamente a primeira que estará por detrás da vingança inclemente que se desencadeia e engole todos no seu caminho. Kaede é, talvez, a personagem mais carismática do filme, parecendo combinar traços de várias “vilãs” literárias, sendo muitas vezes comparada a Lady Macbeth. A sua malvadez é motivada pela vontade de destruir o que Hidetora construíra à custa da sua família – mas nem ela escapa ao turbilhão. A sua resposta à violência de Hidetora não é, no entanto, a única que vemos no filme. Sué encontra consolo no Budismo. O seu misterioso irmão, Tsurumaru, cego por acção de Hidetora, refugia-se na música, a perda da sua flauta precipitando o desfecho trágico, sendo também com sua figura que o filme termina, em aberta devastação.
Se os espaços exteriores, com a sua vastidão e movimento evocam paisagens pintadas, os interiores, com a presença constante de biombos e outras divisórias, sugerem cenários teatrais.
Embora haja em Ran uma narrativa clara – quase apetece dizer clássica – é pela dimensão visual que o filme se distingue. Merecem, pois, serem referidos os nomes dos directores de fotografia: Takao Saito, Masaharu Ueda e Asakazu Nakai (então com 86 anos), todos tendo antes trabalhado com o realizador. Kurosawa terá passado mais de uma década a preparar o filme. Fez mais de cem esboços e storyboards, e esse planeamento minucioso é evidente no filme. Cada plano está cuidadosamente enquadrado, com objectos dispostos e gestos coreografados com precisão. Se os espaços exteriores, com a sua vastidão e movimento (vento nas ervas, nuvens) evocam paisagens pintadas, os interiores, com a presença constante de biombos e outras divisórias, sugerem cenários teatrais. Grandes planos são evitados e a distância mantida das personagens, bem como a sua caracterização, remete para a inspiração da tradição teatral japonesa do Noh.
No entanto, talvez sejam as monumentais cenas de batalha que tornam o filme memorável, em particular o ataque ao castelo de Hidetori pelas forças de Jiro e Taro, cujo massacre, pincelado a vermelho vivo ao som da partitura de Toru Takemitsu, é particularmente impressionante. Terão, aliás, sido os feitos técnicos destas sequências que terão inspirado autores como Zhang Yimou. Há um contraste poderoso entre o relativo isolamento dos intervenientes em algumas cenas, tanto interiores como exteriores, e o “arrastão” colectivo das cargas de cavalaria nos confrontos militares. Também o guarda-roupa de Emi Wada – distinguida com um Óscar pelo seu trabalho em Ran – merece menção, com peças que constituem uma parte importante do esplendor visual do filme.
Ran não foi o último trabalho de Kurosawa – embora tivesse sido visto como testamentário à altura da estreia. Não deixa de haver algo curioso num septuagenário persistente em face de críticas e falta de fundos a filmar um outro que os que o rodeiam vêm como meio louco e que continuamente reaparece mesmo quando se julgava que tal não fosse possível. Também se pode ver aqui uma interessante reflexão sobre a violência causada por humanos – as experiências de vida de Kurosawa não terão sido alheias a essa perspectiva. O seu primeiro filme, Sanshiro Sugata (Judo Saga, 1943) foi feito, precisamente, em plena Segunda Guerra Mundial.