O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do 4.º Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 27.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema.
Uma jornada não se conta pelos passos que se dão, mas pelas reflexões e conclusões que se tiram ao longo da caminhada. Serpentário (2019) trata, simultaneamente, do passado, do presente e do futuro. Uma jornada tanto física como psicológica, num ambiente íntimo e solitário.
Em jeito de reflexão interior, o filme convida-nos a deambular por diversos géneros cinematográficos, tempos e acontecimentos históricos. Numa primeira parte, as imagens aliam-se a uma narrativa poética, mais sincera e sem grandes floreados estilísticos. Procuram-se respostas a perguntas que começam a palpitar, sem ordem, pelo nosso consciente, como aquelas que fazemos aquando de uma grande mudança, ou de um acontecimento que nos faz rever toda a nossa existência. Assim acontece à personagem interpretada por João Arrais.
Depois de receber uma carta da mãe, lida em voz off por Isabel Abreu, pedindo-lhe que parta até ao país onde ela ficou e que a procure. Entendemos tratar-se de Angola, por ser o local de nascimento do realizador Carlos Conceição, mas também pelas belíssimas paisagens vermelhas, contrastantes das típicas planícies de safari, pelas referências ao passado colonial e pela utilização da imagem de arquivo do discurso de Agostinho Neto, aquando da proclamação da independência, em 1975. Mas identificar-se ou não Angola é pouco relevante, uma vez que o sentimento que o filme transmite é transversal e universal.
As perguntas reflectem a nossa preocupação para com o assunto; as respostas tornam-se secundárias e finitas. Mas nada em Serpentário é finito, tudo é desconhecido; tal como o universo.
Serpentário abre com uma citação do próprio Conceição referindo uma história sobre a mãe querer um pássaro que tem uma esperança média de vida elevada e que ela apenas o aceita se o filho assumir cuidar do pássaro depois da morte dela. Esta busca pelo local onde a mãe se encontra, ou onde se encontra o pássaro, convida a várias indagações. Deambulamos pelo passado, referente a memórias pessoais, mas também colectivas. O passado funde-se com a visão do presente. Hoje, relembra-se a colonização, mas de um modo não glorificado, e é significativo poder ver-se essa perspectiva no cinema. O passado é um facto inalterável, contudo, o olhar que hoje podemos lançar sobre o mesmo pode, e deve, ser mutável. Também mutável é a realidade. Entre memórias fragmentadas de um passado colectivo e as reflexões presentes desse mesmo passado, surge a (re)construção ou possibilidade do futuro. Em jeito de ficção científica assente numa estética retro, espelha-se um futuro intergaláctico. Será a descoberta do universo a nova era dos “descobrimentos”? Deram as naus lugar aos foguetões?
Mas também há espaço para cowboys! Referencias a um tempo de guerrilhas e de justiça pelas próprias mãos; um tempo não tão distante quanto o dos “descobrimentos”, mas suficientemente no passado de modo a poder ser reflectido sob novas perspectivas. A investigação interior posiciona-se globalmente. O ato subjectivo do pensamento isolado acarreta componentes sociais, políticas e económicas que se materializam em reflexões visuais. Não é imediato o acesso à crítica de forma global, porém, através das imagens de arquivo e sequências de montagem [de referir que me fizeram recuar até à sequência final do Acto da Primavera (1963), de Manoel de Oliveira], estabelece-se a relação com facilidade.
O ambiente pós-catastrófico e o isolamento potenciam a materialização de reflexões pessoais de modo a suscitar alguma mudança. Porém, num segundo momento, o jovem encontra-se totalmente sozinho na sua busca. Anteriormente, víamo-lo num meio habitado, com pouca gente, mas habitado: chega de helicóptero; há estradas alcatroadas, onde passam poucos carros; dorme em hotéis; e pede ajuda a um condutor (interpretado pelo próprio Carlos Conceição) que o leva apenas até um determinado ponto. A partir daqui, o jovem fica sozinho e, curiosamente, deixamos de ter acesso aos seus pensamentos. Somos transportados, não para as suas reflexões íntimas, mas para o seu lado. Acompanhamo-lo por paisagens desertas e por casas vazias e abandonadas. Deixamos de ter acesso ao seu interior e posicionamo-nos na sua busca. Percorrer aqueles locais permite-nos sentir a melancolia e o tom definido pela voz off do primeiro momento.
A busca parece interminável e cansativa, mas há que continuar. A esperança alcança-se e pertence a quem a procura. No meio do vazio, ouve-se o pássaro da sua mãe – a voz deste é a mesma – e estabelece-se o diálogo. O que pode parecer ridículo não o é; o filme encarrega-se de criar um ambiente em que esta cena seja verossímil. O diálogo é assertivo e eficaz. Não pelas respostas, mas pela ausência delas.
Conceição relembra-nos que as perguntas que nos colocamos ao logo da nossa jornada são mais importantes do que as respostas que possamos ter. As perguntas reflectem a nossa preocupação para com o assunto; as respostas tornam-se secundárias e finitas. Mas nada aqui é finito, tudo é desconhecido; tal como o universo (ou o que estava para além dos mares, para os navegadores do século XV). A busca e a descoberta de si são o caminho essencial para a resolução da maioria dos problemas, mesmo para os problemas sociais, políticos e económicos.
Rúben Sevivas