“A evidência é a marca do génio de Howard Hawks.”, escreveu Jacques Rivette nos Cahiers du cinéma sobre o grande cineasta clássico. Perguntamo-nos se o mesmo não poderá ser dito dos melhores filmes da Pixar. A que evidência nos referimos? Mais nenhuma que a do ecrã. Olhamos para ele nos mais conseguidos filmes do estúdio de animação norte-americano, somos levados na engrenagem de uma máquina emocional onde a nitidez das narrativas coexiste com a maturidade de questões e dilemas apresentados de maneira universalmente acessível, e voilà, a genialidade surge-nos como evidente. Na dimensão mais imediata e emotiva de Finding Nemo (À Procura de Nemo, 2003), Inside Out (Divertida-Mente, 2015), ou mesmo no começo de Up (Up – Altamente, 2009), compreendemos a marca do génio do estúdio. Tal como eles, Toy Story 4 (2019) é, por isso, um filme genial.

Não quero ainda largar Rivette. No texto seminal em causa, intitulado “Génie de Howard Hawks”, é possível ler o seguinte excerto: “Com efeito, nada pode opôr-se à admirável obstinação, à teimosia dos heróis de Hawks. Uma vez a caminho, irão, por uma forma extrema da lógica, até ao limite de si próprios e daquilo a que si próprios prometeram, sejam quais forem as consequências. É preciso terminar aquilo que se começou.”* Nele, vejo explícita a melhor descrição já feita da personagem do brinquedo Woody. É aqui que eloquentemente está expressa, de forma sucinta, a sua determinação, insistência e pertinácia, quase ao ponto de se assemelhar ao individualismo. E é principalmente nele que vejo descritas a intrepidez, a rectidão e a honra pessoal que são o miolo moral do pequeno brinquedo. Num mundo onde o western, enquanto género, está morto (o que resta são exercícios), Woody é o único verdadeiro cowboy que ainda sobrevive e chega às audiências do mundo inteiro. É uma personagem de um cinema de outro tempo pela forma paternal como protege um grupo, como afirma a sua existência e se define pelas acções, como tem em si incorporados valores como o espírito de sacrifício, o altruísmo, a lealdade, e uma consciência moralmente resiliente numa sociedade tentada pela facilidade da desistência. E, tal como algumas dessas figuras cinematográficas do Velho Oeste, é ele que pega numa personagem novata (aqui Forky, o pequeno garfo de plástico encontrado no lixo e enfeitado à mão) para tentar orientá-la sob a sua asa, fazendo-o compreender de que ele é melhor do que julga. Como John Wayne em Rio Bravo (1959), só que existencialmente angustiado.
Num mundo onde o western, enquanto género, está morto (o que resta são exercícios), Woody é o único verdadeiro cowboy que ainda sobrevive e chega às audiências do mundo inteiro.
“Marca do génio”, dizia, e citarei alguns exemplos. O primeiro, quando Woody caminha acompanhado de Forky numa estrada, onde o segundo diz ao primeiro que gosta de lixo porque fá-lo sentir-se “quentinho e aconchegado”. Woody, decidido em querer provar-lhe que ele é um brinquedo e não lixo, ao mesmo tempo tentando fazê-lo compreender a importância que tem para uma criança, responde que é isso que a dona de ambos sente com Forky: o calor, o aconchego, a segurança, enfim, a totalidade de consolo que um pequeno objecto de plástico pode conferir na infância. Resposta de Forky: “Então eu sou lixo!” Isto não é só um momento humorístico, é a aplicação do método dedutivo no desenvolvimento de um puro debate existencial. É um objecto feito de material deitado fora um brinquedo ou lixo? E, de igual modo, a partir do momento em que um brinquedo é perdido ou posto de parte (o grande medo de Woody), passa ele a ser considerado lixo ou poder-se-á afirmar que é ainda um brinquedo? Saber colocar questões filosóficas tão sérias como “Quem sou eu?”, “Por que razão vivo?”, “Qual é o meu lugar?”, “O que é que me define?”, de uma maneira simples que não deixe de suscitar o riso, eis a marca do génio da Pixar.
Outro exemplo. A importância dada à caixa de corda de Woody cobiçada pela boneca Gabby, o que acaba por atingir o seu pináculo no comovente monólogo onde a boneca expõe o seu desejo de afecto concedido por uma criança. Neste momento, Gabby deixa de ser vista como uma vilã para passar a suscitar a nossa empatia. O que antes parecia ser uma personagem perversa revela-se como apenas uma miúda magoada que quer ter uma chance de ser amada e uma vida normal como os outros. A sua condição parcialmente debilitada, da qual não tem culpa, é o único obstáculo para esse objectivo. E é por isso que Woody, mais movido pela compaixão do que pelo desespero de salvar Forky (prisioneiro da boneca), acaba por ceder. Confrontar a audiência com algo tão sério como a importância do transplante de órgãos (o plano subjectivo quando Woody acorda, após a remoção da sua caixa, não sugere outra coisa que não um despertar num bloco operatório) de uma maneira alegórica, subtil e que transcenda qualquer dicotomia “bons / maus”, eis a marca do génio da Pixar.
Último exemplo. A primeira cena, onde ocorre o resgate do pequeno carro eléctrico preso na lama, sendo concluída com a despedida entre Woody e a pastorinha Bo Beep. Neste começo, fica automaticamente explícito de que se tratará de um filme de resgate, ao mesmo tempo que condensa os temas fundamentais que irá abordar: o desapego das crianças aos brinquedos, o momento em que os últimos passam a ser “renegados”, “perdidos”, “postos de lado”, ao mesmo tempo que introduz a história de amor entre Woody e Bo Beep numa separação que fica a aguardar o momento do reencontro. Conseguir sumarizar o filme inteiro na primeira cena, eis a marca do génio da Pixar.
Saber abordar temas intemporais como o amor, a família, a passagem do tempo, o desejo de pertença, o questionamento da própria identidade, a oposição do compromisso à liberdade individual, a mortalidade, enfim, conseguir traçar permanentes paralelismos com o conjunto de experiências que caracterizam a condição humana de uma forma emocionalmente directa, é isto que faz de Toy Story 4 estar ao nível dos melhores filmes do estúdio. Para quê falar no abraço de Woody e da pastorinha Bo Beep no Parque de Diversões, com a roda gigante em andamento colocada perspicazmente em plano de fundo? Para quê referir o momento em que Woody dá a estrela de xerife a Jessy, silenciosamente, com apenas um ligeiro abanar de cabeças aquiescente a expressarem o que representa aquele gesto? Para quê mencionar a perfeição que há naquele derradeiro adeus sob a luz da lua? Colocar palavras, tentar verbalizar momentos assim, é torná-los redundantes. Porque são imagens extraordinárias que, por si, dizem absolutamente tudo. Basta levantar os olhos e recebê-las. Basta assistir à marca de um génio presente em cada cena. Basta a evidência do ecrã.
*Excerto traduzido por Maria José Paletti, disponível no volume Howard Hawks da Cinemateca Portuguesa.