Há cerca de um ano, lamuriava-me acerca do estado da distribuição nacional dos filmes de Hirokazu Koreeda. Com efeito, desde Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) até Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Filho, 2013), o cineasta viu todas as suas longas-metragens (à excepção de uma) serem lançadas em Portugal nos cinemas ou directamente para DVD. Depois, a partir de 2014, instalava-se a ausência de novas estreias, algo tão comum quando se é espectador de cinema japonês no Ocidente (os infelizes que o são vêem cineastas aos bochechos numa total descontinuidade com a contemporaneidade das obras). Arriscávamo-nos a assistir a mais um esquecimento silencioso, mais um grande nome ausente a cada ano das salas. Felizmente, a Legendmain Filmes tem rumado contra esta tendência que se afigurava certa. Para além de já ser responsável por duas estreias em cinema – o atípico Sandome no satsujin (O Terceiro Assassinato, 2017) e o galardoado Manbiki kazoku (Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, 2018) – junta-se agora a sede coleccionista da distribuidora em disponibilizar outros dois filmes inéditos de Koreeda no nosso país. Composta pelas quatro mais recentes longas de ficção (incluindo as já referidas estreias passadas), a caixa de DVDs é uma excelente oportunidade para colmatar as nossas falhas de distribuição no conforto do lar e na fortaleza de ócio que é o sofá. Passemos de revista o seu conteúdo.
Umimachi Diary (A Nossa Irmã Mais Nova, 2015)
É com um plano de pés estendidos numa cama e o som do mar que A Nossa Irmã Mais Nova abre. Dois corpos sonolentos abraçados, como se, mesmo no amor, Koreeda substituísse a intensidade pela dormência. O mar, ele, fará parte de quase todas as cenas: nos passeios pela praia onde se coleccionam conchas, se atolam os pés na areia e se fala sobre a vida; ou em off, na discreta mas omnipresente sonoridade das ondas que não desgruda dos espaços, mesmo os interiores surpreendentemente. É como se a cadência infinita do movimento do oceano sugerisse um ethos para os humanos: baseia a tua vida no ir indo, encontra a beleza na transiência e no acidente. São esses os sussurros uma e outra vez pronunciados pelos shomin-geki do cineasta. Este, talvez o seu mais horizontal (baseado num manga atento aos ritmos do quotidiano), nada destoa desse postulado.
À semelhança do filme anterior, Tal Pai, Tal Filho, a narrativa posteriormente repleta de pequenos e insignificantes nadas parte de uma situação acidental – e o que pode ser mais acidental do que as razões de nascer e morrer? – para apontar laços familiares estabelecidos, não pela condição, mas pelo gerúndio. No funeral de um pai divorciado e ausente, três irmãs que partilham casa conhecem a meia-irmã adolescente que passará a coabitar com elas. A premissa tele-novelesca só o é em aparência já que Koreeda opta por desenvolver as relações humanas no tempo sem precisar de fogo de artifício e quejandos, destapando assim o mundo silenciosamente afectuoso das três irmãs que, afinal, são quatro. Unidas outra vez pelo luto, no final descemos com estas mulheres até ao mar. A tranquilidade inquebrável mesmo perante a finitude é animada pelas paisagens místicas de Kamakura, a antiga capital do Japão e que muito celebradamente foi filmada por Yasujiro Ozu em Banshun (Primavera Tardia, 1949), com contornos não muito diferentes dos de A Nossa Irmã Mais Nova.
Umi yori mo mada fukaku (Depois da Tempestade, 2016)
Em Aruitemo aruitemo (Andando, 2008), Hiroshi Abe encarnava o arquétipo koreediano do jovem adulto na lida com os seus progenitores: introspectivo e incompreendido, escondendo dores passadas num canto (por pudor ou incapacidade de realmente as expressar), todavia aguardando por uma reconciliação possível, uma que não acabe em lágrimas e efusivos abraços, mas que conceda uma sensação qualquer de fechamento. Costuma ser esse o papel dos filhos em Koreeda, personagens que olham passivamente para cima, esperando algo dos adultos, enquanto coleccionam introspectivamente experiências de frustração inter-subjectiva. “O mundo em que vivemos, trai-nos.” Quem o afirma é Mikio Naruse, mas Koreeda, como seu bom discípulo, subscreve o mesmo adágio no seu cinema. Se para ele existem primeiras traições, elas nascem certamente na origem de todas as relações, ou seja, no seio familiar. E são os pais que frequentemente vão a exame, sendo os responsáveis dessas primeiras desilusões.
Depois da Tempestade inverte por completo o papel de Abe: desta vez, é ele o jovem pai divorciado procurando colar os pedaços de uma família desintegrada. É do seu olhar que o filme parte, algo que Koreeda nunca tinha feito antes, pelo menos desta maneira. Desenganem-se, no entanto, aqueles que esperavam uma mudança radical de tom ao colocar para segundo plano o mundo perspectivado pelas crianças: o filme é incrivelmente anti-dramático, talvez o mais bem disposto de todos do realizador, jamais caindo na tentação de ser paródico. Deva-se isso principalmente à química entre o personagem de Abe e Kirin Kiki (na nossa entrevista feita antes do seu falecimento, a lendária actriz teceu alguns comentários sobre a rodagem deste filme em específico) e a acepção segundo a qual ser adulto não equivale a ser-se inteiramente responsável ou maduro. Com efeito, filho, avó, ex-marido e ex-mulher abrigam-se de um furacão na mesma casa e o mais avisado dos quatro parece ser, sem surpresas, o petiz. O momento culminante, modestamente culminante sejamos precisos, dá-se no meio da tempestade: filho e pais reunidos num intervalo, os três aninhados num túnel de um parque infantil esperando que passe o dilúvio. Duvidar se o fenómeno climático corresponde metonimicamente à situação familiar é o mesmo do que ignorar os efeitos eufóricos de um outro marcante furacão do cinema japonês, o de Shinji Sômai em Taifû kurabu (Typhoon Club, 1985), aludido aqui quiçá por Koreeda. No entanto, há bonança até na tempestade. Se o mundo nos trai na nossa primeira idade, é necessário passar todas as outras a reconciliarmo-nos com ele. Entre pequenos e grandes adeuses, Depois da Tempestade ensina-nos a aceitar as fraquezas e incompletudes daqueles que nos colocaram no mundo. Com um leve arco nos lábios. Uma pérola.
Sandome no satsujin (O Terceiro Assassinato, 2017)
Tendo em conta a homogeneidade estética dos dois filmes precedentes (e do quarto que a este sucede), O Terceiro Assassinato afigurar-se-á como o caso de excepção, o isolado número um do título desta resenha. Ultrapassamos os filmes de família e “das pessoas comuns” (é esse um dos significados da palavra shomin que baptiza o género cinematográfico dominado por Koreeda) para nos sujeitarmos à circunstância, tão abstracta e rara, de questionar gnoseológicamente um crime, um criminoso, os seus fundamentos e contraditórios testemunhos. Há aqui mais Akira Kurosawa e Yoshitarô Nomura do que Mikio Naruse. Mas tanto o dinamismo cinético do primeiro como a crença no real do segundo foram aqui abandonados, se quisermos, superados pela frieza observacional de um céptico. Há, de facto, um distanciamento analítico que não arroga nenhum tipo de simpatia que não pertença de antemão ao universo interior, solipsista, dos personagens. Os últimos são filmados na medida em que enganam ou são enganados. Pelo quê, perguntamos? Não apenas pelas emoções, mas pelo simples facto de acreditarem uns nos outros. Por onde anda a verdade, se ela chega aos ouvidos por meio da fala?
Talvez por isso mesmo, a violência filosófica deste Rashômon (1950) moderno e burocrático seja demonstrar, por a mais b, que a adesão à verdade de um testemunho num tribunal (e porque não na vida?) é sempre acompanhada por uma empatia fiduciária que não foi sujeita ao crivo da racionalidade quando os factos disponíveis não facilitam o veredicto. E, no entanto, numa das últimas sequências em que o advogado fala com o seu cliente, muitos espectadores poderão sair com uma pretensão de clarividência, um levantar a saia de Maya, aquele “aha” característico do leitor de policiais quando, na realidade, aí apenas se produziu o tipo de ciência barata de videntes, cartomantes e espectadores de cinema: uma baseada na intuição e em palpites, insusceptível, portanto, de certeza. Fora isso, o que nos resta? Um querer crer silenciosamente desesperante e desesperado na encruzilhada dos factos que debalde quedam por destrinçar – é esse o significado metafórico do derradeiro plano no impasse do asfalto. Mascarado pelas convenções do courtroom drama, O Terceiro Assassinato é muito mais Platão do que Poirot.
Manbiki kazoku (Shoplifters: Uma família de pequenos ladrões, 2018)
O tempo que passou desde a estreia de Shoplifters permitiu cimentar em nós a impressão de que se trata de uma obra de consagração, uma em que Koreeda se esforça por resumir mais de quinze anos de cinema, colocando vários ingredientes numa panela de pressão de referências passadas, umas facilmente discrimináveis, outras nem tanto. O tema da desconstrução da consanguinidade é aqui retomado, desta vez exaustivamente já que somos instalados como hóspedes no seio de uma família inventada, composta por pequenos delinquentes que roubam como se pedissem emprestado (portanto, sem estabelecerem prazos de devolução). É esse tipo de mentira piedosa e infantil que possibilita os laços de familiaridade entre os habitantes da mesma casa, isto é, investiga-se aqui o momento em que fazer de conta adquire mais poder do que a realidade fáctica ao ponto de as duas dimensões se misturarem temporariamente. Serão estes os ecos transfigurados da noção de verdade, em último caso inacessível mas apesar de tudo falsificável, de O Terceiro Assassinato? Por outro lado, frequentemente em ocasiões passadas quando descrevendo a problemática discreta das relações parentais, Koreeda focava a sua atenção maioritariamente num elemento do par. Aqui, desdobram-se os olhares e dá-se o mesmo tempo a cada um: veja-se o filho que desmonta a autoridade do pai, esta mantendo-se apesar do desembaraço, indigência e simplicidade do último; relembre-se o pai que, a despeito de todos os enganos, luta contra a ideia de voltar a ser um desconhecido para as crianças enquanto salva o seu próprio couro. Todos os personagens adquirem um grau de complexidade considerável, como se tivessem estagiado no real, e as decisões que tomam baseiam-se nas percepções multiformes que constroem acerca dos outros. É esta teia de olhares, fina e subrepticiamente desvelada, que atribui magnetismo aos personagens de Shoplifters: a peculiaridade cria personalidade.
Porém, a intransigência dramática de Koreeda fá-lo meter tudo em causa no terceiro acto. Questionando a afectividade que tanto tempo demorou a construir em nós, agora pergunta se as mentiras não têm, afinal, perna curta. Voltamos ao jogo de espelhos de O Terceiro Assassinato, aos interrogatórios policiais em que o mundo das intenções não nos é imediatamente evidente e acessível. O filme pede-nos que suspendamos o juízo quando uma parte de nós não o consegue ou quer fazer. É neste ponto que relembramos a crueza observacional de Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) ou Distance (2001): é esse o travão que Koreeda usa quando o espectador deseja ser mais do que é em nome dos seus sentimentos e apegos. Reduzindo o significado da narrativa ao caso específico, individualizando-o, pode ser a última desilusão do activista que vê causas sociais em todas as esquinas, porém, não é o método dialéctico, ligeiramente cruel, de Koreeda a forma mais justa de lidarmos com os humanos no ecrã e escaparmos, assim, a um idealismo que poderia estar latente na sua proposta? Como todas as obras de síntese, Shoplifters pode, por vezes, dar a impressão de revisão da matéria dada, mas é o modo como cada influência é convocada e transformada que aqui realmente faz a diferença.