Parece-me que faço a maior afronta do mundo aos sentimentos do meu coração quando procuro dar-tos a conhecer escrevendo-os.
Soror Mariana Alcoforado, in Cartas Portugursas [início da Segunda Carta]
O tempo tem destas coisas paradoxais: distende-se languidamente na rapidez de cada dia. De repente já passou quase um ano desde a última edição do Doc’s Kingdom, e uma nova edição se avizinha. E tanta água correu debaixo deste moinho a que se chama a azáfama da contemporaneidade de um trabalhador independente (agora, já não tão independente assim). De tarefa em tarefa as coisas vão-se arrastando e a lista de afazeres vai-se compondo e recompondo com uma ou outra pendência que teima em não ser riscada. Semanalmente aponto as minhas faltas, obrigações e projectos, dos mais prosaicos aos mais garbosos, e invariavelmente há um ou outro tópico que saltita de edição em edição deste folhetim de irrealizações. Nas últimas edições tem sido o pagamento do IVA. Mas há vários meses que figura, em letras progressivamente maiores e mais tristes, a escrita de um texto que reflicta sobre a experiência do Doc’s Kingdom 2018 e antecipe a nova edição de 2019. Chegou a hora, entre a espada e a rosa, de me lançar na escrita.
Peguei nas Cartas Portuguesas e li-as ontem à tarde. Sabia que a obrigação da escrita luzia por entre a tarde livre de sábado, mas essa mesma liberdade me impeliu a libertar-me das obrigações. Li. Nunca as tinha lido. E como invariavelmente acontece com o leitor ou o espectador, o acto de aceder às obras faz-se por uma filtragem subjectiva que enforma o que se lê e o que se assiste. Lia as cartas dessa religiosa portuguesa que sofria o abandono e se deixava flutuar na dor da perda e do desprezo e senti-me um pouco como o militar francês que abandonou os encontros cinematográficos de Arcos de Valdevez à solidão enclausurada do esquecimento. Senti-me pior, em dívida (coisa que o militar francês talvez não tenha sentido), e fui progredindo na leitura. Descubro uma passagem que me animou: “Detesto a sua sinceridade! Acaso lhe tinha pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Porque não me deixou a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não procurava ser esclarecida.” O amor de Soror Mariana é um amor que existe por causa do abandono, por causa do desprezo, e existe porque em solilóquio. Ela não procura resposta, nem sequer deseja verdadeiramente a retribuição do amor: ela delicia-se nos prazeres da dor e do sofrimento, na sua máxima tristeza, na personificação da coitadinha enganada. Isso alimenta-a e justifica toda a sua desgraça.
Pensando assim custa menos o abandono, porque ele apenas confeitou a memória de uma bela semana de cinema, conversas e banhos de rio – pensamento muito conveniente ao que aqui assina a prosa tardia, como aliás era também para aquele que se especula ter escrito de facto as cartas (uma sádica pena masculina). Sádico sou, sádico me assumo. Exactamente por causa da distância que me separa desses dias de Setembro, talvez não vá falar verdade do início ao fim, talvez vá inventar ou adocicar certos pormenores, talvez vá esquecer isto ou aquilo, mas talvez tudo isso incorpore melhor a sensação do todo sobre cada uma das partes, elevando a experiência do evento como um espaço de comunhão em redor do cinema. Passaram os meses, e com eles fui reflectindo calmamente sobre aquilo que me parece definir a natureza deste Seminário Internacional sobre Cinema Documental. Já no ano passado, em jeito de antecipação, fiz as honras do convidado e apresentei os presentes, Andrei Ujică, Deborah Stratman, Forensic Architecture, Jumana Manna, Maria Augusta Ramos, Nicolas Pereda e João Pedro Rodrigues, segundo o olho curatorial de Patrícia Mourão e Nuno Lisboa. Mas aquilo que me ficou, mais do que os filmes, foi uma ideologia dos modos de ver, de discutir e de pensar – “contrariando a dimensão quantitativa dos festivais e a formatação do espaço académico, o que aqui se propõe é uma experiência de cinema e uma experiência humana global, que desejavelmente se tornem uma só coisa”. Se tivesse que resumir o Doc’s Kingdom (2018) seria como um elogio da horizontalidade.
Ho·ri·zon·tal (horizonte + -al) Adjectivo de dois géneros: 1. Paralelo ao horizonte ou ao nível da água contida num recipiente. 2. Do horizonte ou a ele relativo. 3. Deitado ao comprido. 4. Nivelado. Substantivo feminino: 5. [Informal] Prostituta.
O que me tocou, mais do que qualquer outra coisa, foi esta qualidade do Doc’s Kingdom de fomentar o exercício da horizontalidade, nos vários sentidos da palavra. Primeiro, a horizontalidade como a nivelação entre todos os participantes. Todos circulam pelos mesmos espaços, se sentam nas mesmas cadeiras, se olham olhos nos olhos e jantam em redor das mesmas mesas. Essa ideia des-hierarquizada de estruturar este evento, onde “seminaristas”, bolseiros, jornalistas, críticos, programadores, curiosos e realizadores se equivalem e dialogam “ao mesmo nível”, foi aquilo que achei de mais refrescante na edição de 2018 (e pelo que me contam, em todas as outras edições também é assim). Esta ideia de horizontalidade entre os participantes proporciona um debate aceso e desbragado sobre os filmes. Em formato de “sala redonda” ou de ágora, todos se encontram num centro, que são os filmes, e todos são espectadores e comentadores desses filmes, incluindo os realizadores (espectadores e comentadores privilegiados, é certo, mas não diferentes de todos os outros na essência). Exactamente por uma questão de estrutura, que abala definitivamente a banalidade que os Q&A petrificaram, houve vários momentos de confronto, em que os realizadores e os seus trabalhos foram postos em causa por alguns dos participantes. Esses momentos, de desconforto para um ouvinte como eu, “patrioticamente de bandos costumes”, abriram uma fenda nas posturas mais ou menos aristocráticas e colocaram os cineastas em posição de defesa: nada estava seguro, nenhum filme estava isento de se tornar alvo, nenhum discurso estava a salvo do contraditório. Ainda bem.
Dizem-me as pessoas que frequentam (ou já frequentaram) o Seminário há várias edições que esses espaços de discussão quente com os próprios autores é frequente. Desta feita os centros nevrálgicos da contenda foram João Pedro Rodrigues e o seu Corpo de Afonso (2012), os Forsenic Architecture pelos seus métodos de (falsa) imparcialidade e Daniel Mann e o seu Future Diaries (2011), a propósito do qual se ouviu, de boca cheia, expressões como “não podia acreditar nos meus olhos”, “nojento”, “raiva”, “como podem comparar isto ao Jonas Mekas?!” ou ainda “o filme simplifica o mundo como só os homens brancos são capazes de fazer.” Future Diaries é, nas palavras do próprio Mann, “uma armadilha que montei a mim mesmo” e de facto estava mesmo a pedi-las: partindo das imagens amadoras que o seu pai filmou ao longo dos anos das suas viagens de família (onde surge o realizador, os seus irmãos, pai, mãe e restantes elementos do agregado), o realizador remonta o material e acrescenta-lhe uma narração descrevendo a romagem de uma família de migrantes forçados/refugiados (sendo que Mann é israelita e descreve uma realidade palestiniana). O problema fundamental do filme, mais do que o emaranhado moral que coloca, na utilização de uma ironia demasiado fina e um humor demasiado negro, é a forma como se apresenta como objecto unívoco e monótono: as imagens são “burguesamente” encantadoras (a classe média glorificando-se no seu ideal de família e na sua perspectiva sobre o mundo que descobrem através das lunetas do turismo) e a narração em vez de contrariar essa qualidade das imagens, reforça-a com uma altivez posh – lendo os meus apontamentos, decalco que “é aqui que ele faz merda, na falta de distância entre os elementos do dispositivo.”
Mas o debate decisivo (porque inaugurou outro panorama de ver e discutir) foi de facto aquele que se seguiu ao referido título de João Pedro Rodrigues. O filme do realizador português coloca algumas questões morais logo a partir da sua conceptualização: um filme-casting para a escolha de um actor para interpretar D. Afonso Henriques que se resume (quase exclusivamente) a corpos de ginásio, homens inflamados pela prática do halterofilismo. Como dizia, O Corpo de Afonso começa com uma série de homens num fundo verde de chroma key, a certa altura ouvimos a voz distante do realizador – vinda de um fora de campo sem origem definida – que diz “podes despir-te”. Os homens começam a despir-se à vez, uma peça primeiro, depois outra, e por aí fora, até já não haver mais peças. Rodrigues, que nunca se vê, é presença efectiva no filme por transformar a câmara num objecto de domínio quase fetichista. O realizador usa a lente – ferramenta voyeurista por excelência – e os seus “actores” num exercício quase pervertido de exploração corporal. O mote de tudo isto é um projecto de Guimarães – Capital Europeia da Cultura e o Afonso do título é o rei fundador da pátria, patrono vimaranense.
O filme consiste num falso casting para interpretar a figura mítica do primeiro rei português, mas a escolha propositada de vários culturistas e go-go dancers para a audição não é nada inocente. Rodrigues não se interessa muito por isso – pelo rei e sua figura de proporções míticas – interessa-se sim pelos corpos que tem em frente da câmara e pela forma como os pode ordenar – “vira-te de costas e agora de lado” – e montar – no sentido cinematográfico – já que se interessa por encontrar ligações entre as vidas deles (o desemprego como veio central). Os homens bem se esforçam por ler emocionadamente as palavras que lhes dão a ler, ou por empunhar uma enorme espada, mas a câmara de Rodrigues está deliciada com as barrigas tonificadas e com os peitorais definidos; os enquadramentos cortam os homens em pedaços, deixando as cabeças de fora, centrando-se quase sempre no tronco e na virilha. Este olhar rebarbado é o melhor do filme (e o mais atrevido também), por dar voz a um realizador substancialmente do corpo mas cuja presença (real ou sentida) no seus outros filmes é praticamente irreconhecível – excepção feita, talvez, a Esta É a Minha Casa (1997), primeiro filme do realizador, onde ouvimos a sua respiração de forma tão marcada numa série de planos sequência em torno das igrejas locais, já aí prometendo um cinema do físico; e mais recentemente em O Ornitólogo (2016), onde essa presença é o núcleo conceptual do filme.
O problema: esse rebarbamento do realizador que cativa na sequenciação do filme dentro da sua obra, e que revela mais do realizador do que dos homens, relega para plano secundário os corpos que se exibem. O filme nunca viria a existir (o casting era o próprio filme, apesar de um dos rapazes acabar por ter um papel de relevo em O Ornitólogo) e os vários homens são, na maioria dos casos (uma vez que foi rodado em 2011), desempregados em consequência da crise de 2008. Estabelece-se portanto um jogo de poder entre o realizador (fora de campo, autoritário) e os actores. Um jogo profundamente desequilibrado (como, aliás, em todos os castings e todas as situações de contratação). A câmara tem poder sobre aqueles que se colocam diante dela e o dinheiro mais poder tem: eles precisam do pagamento, eles aceitam, sem questionar, os pedidos [quem tiver visto o casting de Ricardo Meneses – protagonista de O Fantasma (2000) – recordar-se-á da violência do processo e do potencial de humilhação envolvido]. No debate referiu-se que havia um exercício de “ridicularizarão de pessoas pobres”, “objectificação” ou “exploração”. De facto, sendo esta a segunda ou terceira vez que via o filme, pela atmosfera da sala, também eu achei menos graça, logo na revisão, e o incómodo rapidamente se instalou. Mas como respondeu, rapidamente, Nuno Lisboa, “Ficar desconfortável, numa sala de cinema, é um privilégio!”
Acreditar que o realizador é um vilão e aqueles homens são pobres criaturas indefesas e manipuladas pelo dinheiro e pela possibilidade de fama é reduzir (ou aniquilar) o seu agenciamento (processo que, no fundo, revela o próprio olhar do espectador policiador da moral, que de facto reduz uns em relação aos outros). Muitos, senão todos, daqueles corpos foram cuidadosamente construídos para a exibição pública e muitos daqueles homens exibem-se como profissão regular. Eles desejam mostrar-se e João Pedro Rodrigues deseja vê-los. Também como no caso de Daniel Mann, corre-se aqui o risco de desconsiderar, demasiado depressa, a dimensão lúdica do filme. O Corpo de Afonso usa estes corpos “idênticos” (ou melhor, apresenta-os como idênticos) porque o foco principal é desconstruir o mito (mais ou menos salazarento) do fundador de Portugal como figura impossível de força e virilidade. D. Afonso Henriques é um mito com muitas cabeças, ou melhor, um mito sem cabeça e muitos corpos. Corpos esses que Rodrigues compõe como um puzzle de uma mitologia sem fundo. No fundo, esta é um provocador questionamento sobre o problema da representação de figuras mitificadas, onde o corpo se evaporou com os pontos que se acrescentaram aos contos. Rodrigues impõe-nos um corpo! Um corpo visto por olhos queer sedentos. Assim se (des)funda uma nação no gaze atrevido de um realizador porcalhão (e de um espectador como ele, eu).
De certo modo, fico com a sensação que os seis dias de intensa actividade (três sessões diárias às 10h00, às 14h30 e às 21h00 seguidas de conversas de uma a três horas, dependendo da disponibilidade dos participantes e da intensidade dos discursos) tiveram o momento mais forte (porque logo no segundo dia) nesta troca de argumentos. Ao ponto de que cheguei às tantas da madrugada, talvez um pouco tocado pelo álcool do contraditório, e gravei no meu telemóvel um monólogo de prós-e-contras interno que durou cerca de 20 minutos. Todos os neurónios pareciam acesos pelo estímulo daquela sessão e agora, ouvindo-me, percebo pela voz que estava mais cansado do que me sentia, mais sonolento do que lembrava e menos articulado do que então me imaginara. Para quem quiser ouvir as minhas pobres elaborações numa gravação feita com um telemóvel pré-histórico e num estado de não total lucidez, envie mensagem privada (e junte uns nudes sff.).
Já os debates sobre a natureza autoritária do discurso dos Forensic Architecture foram igualmente estimulantes, mas sem o molho dos (desa)guisados. Este colectivo, fundado em 2010, teve como origem a academia e uma aproximação mais experimental às possibilidades do audiovisual na compreensão de crimes de guerra. No entanto, a partir de 2014, este colectivo verte-se num centro de pesquisa que funde metodologias de investigação criminal com as capacidades de modelação digital da arquitectura para fazerem trabalhos de denúncia muitas vezes em parceria com organizações de defesa dos direitos humanos, aliás, na sua maioria os vídeos produzidos são encomendas da Amnistia Internacional e outras associações não-governamentais. A estratégia é simples: a partir das potencialidades da modelação 3D o colectivo “demonstra visualmente” quem foi o culpado de certo bombardeamento, triangulando o local exacto onde caiu a bomba para assim perceber qual o alvo e logo quais as intenções do atacante (este é só um exemplo). São abordagens que têm uma função clara: provocar alterações de legislação, serem formas de denúncia de atrocidades, fazerem parte de processos de direito internacional como ferramentas audiovisuais.
Os seus filmes estão algures entre o tribunal e a sala, escura e clara, uma vez que o trabalho dos Forensic Architecture vem sendo acolhido tanto em festivais de cinema, DocLisboa por exemplo, como em contexto de galeria de arte contemporânea, em instalações de vídeo que por vezes se fazem acompanhar de impressões 3D das modelações que vemos descritas nos vídeos. Portanto, entre a legalismo e a especulação. Há uma dimensão de falsidade perceptiva no discurso assertivo deste colectivo que rapidamente cai por terra quando se analisam os argumentos (e que soa a manipulação moral quando colocada em contexto de galeria): primeiro, certos dados menos interessantes são deixados de fora por não beneficiarem o argumento que se procura traduzir (tudo se centra no efeito, na eficácia do discurso, quase como uma publicidade institucional sem a esteticização publicitária); segundo, o suposto rigor cai depressa em saco roto quando facilmente duvidamos de todos os resultados, todas as triangulações (porque aquela matemática não está a ser verificada por nenhum outro que não os próprios – e com números e bolos se enganam os tolos); terceiro, o discurso objectivo é próprio da propaganda e dos estados que reduzem tudo a estatísticas [lembremo-nos da Revolução de Maio (1937) e da ida do perigoso bolchevique ao Instituto Nacional de Estatísticas e de como este se “rende às evidências”]; quarto, a procura de uma sistema de análise onde se parte da proliferação de imagens produzidas e disponibilizadas nas redes sociais e se procura reduzir essa pluralidade de olhares numa “compreensão” sem ponto de vista da realidade (uma compreensão “técnica” da realidade) é apenas a fachada de uma falsa isenção, tão manipuladora como os discursos oficiais (ainda mais perigosa, porque se trata de um contra-discurso equivalente ao primeiro – um contra-contra-discurso).
Estes foram alguns dos momentos de mais aguerrida contenda. Dos momentos mais harmoniosos, e houve-os muitos e bons, não me debruçarei. Fica-me a amabilidade e grandes óculos de Deborah Stratman, a calma e delicadeza de Jumana Manna, a cara de poucos (ou nenhuns) amigos de Maria Augusta Ramos (ela sim uma realizadora do contra-discurso), a descontracção prática e desarmante de Nicolás Pereda e claro, a ausência de Andrei Ujică. Mas regressando à horizontalidade e ao outro dos seus sentidos, o da posição de “deitado ao comprido”. Não posso deixar de louvar a descontracção da primeira semana de Setembro ainda veraneante e da água doce que preenche a curva do rio Ave. Das refeições demoradas e saborosas em boa companhia, das conversas com amigos novos e antigos, dos passeios e, acima de tudo, do ponto-cruz que Regina Guimarães construiu ao longo dos seis dias do seminário, cheio de olhos compostos e dispostos em diferentes direcções (resumo perfeito do que por ali se passou).
Aproveitando a deixa das tramas de tecidos e o terceiro sentido de horizontal (prostituta) lanço-me, por fim, ao próximo cliente que já baixa a janela do automóvel e me chama com o dedo (erecto). Esse cliente é a próxima edição do Doc’s Kingdom: Floresta de signos, cuja programadora convidada é Agnès Wildenstein. Entre os nomes já anunciados (Hiroatsu Suzuki, Ian Soroka, Jodie Mack, Johann Lurf, Rossana Torres, Laura Huertas Millán) destaco dois que me parecem perfeitos um para o outro (e que tive oportunidade programar nas últimas edições do IndieLisboa): Jodie Mack, por um lado, e Johann Lurf, por outro.
A pergunta que a realizadora norte-americana se coloca, em The Grand Bizarre (2018), estreado no Festival de Locarno do ano passado, é: com que fios se cose o mundo? A sua resposta: com os fios do mundo. Padrões de tecidos, linhas cruzadas em formas geométricas e florais, malhas cerzidas no engenho da tradição, tramas urdidas no tear dos tempos – antigos e modernos –, linhas de programação em Java, fios de som de pautas musicais, traços fronteiriços em mapas coloridos e pontes aéreas em aviõezinhos de papel. Todo o mundo ligado pela voragem das cores que saltitam, qual feitiço animista, ao som das ruas, das buzinas e das máquinas, do passos e das viagens (mastigado pela batida electrónica). Os globos feitos novelos, desembrulhados segundo a rítmica (des)construção plástica dos panejamentos, vistos como sinopses culturais de um fluir perpétuo, onde tudo se cruza e partilha, pelo mundo fora, diante da câmara de 16mm da realizadora. A geometria humana funde-se (e funda-se) nos elementos naturais, o fogo e o mar, cosendo os continentes uns aos outros, as tradições umas às outras, os países uns aos outros e as identidades umas à outras, qual manta de retalhos pop da humanidade.
Este filme, a primeira longa-metragem da realizadora depois de uma trabalho recorrente (mas muito pouco ou quase não visto em Portugal) na metragem curta, conclui perfeitamente o rigor do seu olhar. Sempre no território do experimental (tanto no analógico como no digital), explorando técnicas primitivas através da contemporaneidade, e brincado – sim, porque tudo o que faz é tomado de uma enorme dimensão lúdica – com animações, padrões abstractos e texturas, o cinema de Jodie Mack é uma delícia para os olhos (de ponto-cruz) que reflecte, nesse aparente festim visual sem lastro, sobre os modos da imagem não-representativa (e da, ainda assim gigante, dimensão cultural dessa não-representação).
O outro realizador, desta feita austríaco, Johann Lurf, é um nome recorrente para os frequentadores da secção experimental do festival de Vila do Conde e (há vários anos) do IndieLisboa. Também ele enveredou recentemente pela metragem longa, com ★ (2017), estreada na Viennale e que entretanto percorreu “todos” os outros festivais do mundo (Sundance, Roterdão, Bafici, IndieCork, Gijon, Karlovy Vary, Lanzarote, IndieLisboa, FidMarseille, Underdox, EMAF, Pesaro, Seattle, Thessaloniki, New Horizons, etc.). O percurso de Lurf é igualmente lúdico, mas mais aberto à multiplicidade de formas do audiovisual (da contemplação arquitectural ao frenesim multi-média). No entanto o aspecto do seu trabalho que mais me cativa é, naturalmente, aquele que se prende com os filmes que se constroem a partir de imagens de outros filmes. Por exemplo, recorde-se o hilariante Twelve Tales Told (2014), onde o realizador partia dos genéricos de abertura dos grandes estúdios de cinema norte-americanos e os intervalava num caos estruturalista que quebrava todo o movimento num vai-e-vem de sucessivas interrupções.
De forma semelhante, ★ também se faz sob o signo da interrupção, mas onde o projecto conceptual é potencialmente infinito. Quando Johann Lurf viu Stromboli (1950) reparou que na cena no topo do vulcão o céu estrelado era uma tosca composição de luzinhas sem grande rigor científico. Desde então vem recolhendo planos de céus estrelados em filmes de ficção, tendo identificado, até ao momento, mais de 550 títulos (independentemente das épocas, a fidelidade científica é uma constante). ★ é a compilação cronológica de todos esses planos, com a condicionante de que os filmes tinham de estar disponíveis em formato de home cinema e que o projecto se deveria encerrar com os 90 minutos (as últimas projecções do filme já tinham mais alguns minutos, Lurf não consegue parar). Só céus estrelados, sem qualquer tipo de figuração humana ou naves espaciais ou o que seja, tudo apresentado no formato original, com o respectivo sistema de som e definição de imagem: uma viagem pelo espaço astral que passeia também pela história do cinema; os vários formatos e suportes, os sistemas de cor e som e a evolução dos efeitos especiais. Encantador e revelador: um vídeo-ensaio da história do cinema entendida através do mais particular dos pontos de vista.
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Entre 1 e 6 de Setembro, em Arcos de Valdevez, o Doc’s Kingdom reúne uma comunidade internacional de 100 participantes para um encontro intensivo de sessões e debates com a presença dos/as cineastas convidados/as ao longo de todo o seminário. O Doc’s Kingdom é a experiência integral e cumulativa que abarca as sessões de cinema, os debates e o encontro colectivo numa atmosfera informal e bucólica. Inscrições aqui.