Numa segunda ronda, três walshianos pronunciam-se sobre o “filme do momento”. Carlos Natálio e Ricardo Vieira Lisboa põem alguma água na fervura do entusiasmo, sendo que João Araújo remata o seu texto com duas palavras: “comovente e extraordinário”.
Um dos dilemas mais interessantes levantados por este novo filme de Tarantino talvez seja ilustrado pela ideia de sombra, mais até do que a tão propalada noção de duplo. É verdade que filmes como Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009) e Django Unchained (Django Libertado, 2012), pelo menos esses, já tinham apelado para a capacidade do cinema ser essa máquina redentora da história. De certa forma, o passeio pela L.A. de 69 e o episódio do assassinato de Sharon Tate de Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019) apelam para essa ideia, mas de uma forma algo diversa. Não é tanto, ou apenas, redenção do que ficou na grande narrativa histórica, mas a atenção às tangentes sombrias, paralelas que sempre acompanham os manuais de história, as lendas imprimidas, a história sem o contrapelo assinalado por Walter Benjamin. Tal não seria um problema em si, esse “elogio da sombra”, se ele não viesse acompanhado de um gesto contraditório que o próprio filme encerra: para filmar a sombra, e nela retraçar a ideia de duplificação, de lado B, Tarantino puxa o seu próprio estilo, a sua mise-en-scène, plena de referências e glamour cinéfilo, para a spotlight. Como uma anedota que se conta de forma interminável até que deixemos de acreditar na sua leveza e nos sobre apenas o peso. Temos portanto Tarantino em versão evangelizadora, vertida em método próprio, destacável de personagens. O mundo according with Q.T. aplicável a uma Hollywood em queda lenta mas, sem escândalo, o veríamos transferido a qualquer outro período histórico.
E é essa a questão. Se é verdade que nem todos os filmes de Tarantino são reconstituições históricas, todos eles possuíram sempre uma dada relação com a história… do cinema. Relação essa que surgia em filigrana e que aqui nos é dada em bloco e parece devorar tudo o resto. O que são boas notícias para gáudio do cinéfilo nostálgico que se regozija com uma boa máquina do tempo e que percebe como Tarantino está em Hollywood em 2019, a dizer “era uma vez” uma fábrica de sonhos (alguns, quase todos, entretanto, destruídos). Ainda sobre a noção de duplo pergunto-me: qual o duplo de uma boa ideia, uma má? Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019) é, a espaços, uma cansativa máquina de duplicar. Máquina essa que está na essência do cinema de Tarantino, mas aqui parece descontrolada. Booth é duplo de Dalton, mas também… o rancho que visita o segundo é duplo do cenário do western televisivo que o primeiro está a filmar; a casa de um lado é dupla da casa vizinha; o papel da televisão é (cada vez mais) duplo do papel do cinema; assim como os westerns do esparguete são o duplo do western americano; Once Upon a Time duplica a redenção de Inglorious; o cinema italiano duplo do brilho americano; as cenas filmadas por Dalton tem um duplo lá fora, na “vida”; Tate vê-se duplicada no ecrã… Em resumo, a máquina rola, mas com pouco com que rolar. O espectador fica entretido a juntar os pontinhos para descobrir todas as duplicações, ou embevecido com as referências que se prolongam ad nauseum. Fica-se, pela primeira vez, com Tarantino “preso” nesta espécie de gimmick que cansa bastante, como uma piada proferida à exaustão, um zeitgeist que deve ser procurado em cada esquina e que a cena final (assim como uma ou duas outras pontuais a meio do filme) procura disfarçar.
Carlos Natálio
Não deixa de ser notável que ao nono filme (e a um de uma auto-imposta reforma), Tarantino ainda seja capaz de surpreender. Se os homicídios de Sharon Tate e dos seus amigos são um ponto máximo do terror cénico e a sua recriação uma tentação mórbida, Tarantino finta as expectativas. Ao filmar esse momento que marca o princípio do fim de uma era, volta a percorrer os caminhos quase esquecidos de Pulp Fiction (1994) e especialmente Jackie Brown (1997), numa sentida homenagem cinéfila e repleta de fetichismos. Esta é uma elegia imersiva em relação a uma cidade e um tempo desaparecido, que Tarantino, nascido em 1963, aprendeu a conhecer apenas através dos filmes, na adolescência. É um filme surpreendente pelo desprimorar de uma narrativa orquestrada em direção a uma conclusão, para ceder antes espaço e tempo à criação de um ambiente nostálgico e melancólico. Isso é patente nas diversas sequências à deriva e despreocupadas com uma função narrativa (como nas melhores cenas do filme, com a personagem de Brad Pitt simplesmente a conduzir), algo recentemente raro em Tarantino, igualado também pela forma como são abandonados aqueles monólogos grandiosos, outra das marcas tão típicas da sua obra.
É notável também pela forma enternecedora e enternecido como retrata as suas personagens principais, reminiscente do olhar em Jackie Brown. Depois das personagens como peões de uma peça moralista e de violência estilizada, casos de Django Unchained, Hateful Eight (Os Oito Odiados, 2015) e Kill Bill, este é também um regresso a personagens complexas, que deixam de ser os tais peões para se tornarem antes mais humanas e vulneráveis. Cliff, o duplo, é talvez a mais memorável personagem de Tarantino desde Shosanna de Inglorious Basterds. Não é que as personagens não deixem de ser caricaturas, mas estamos a falar afinal de Hollywood (note-se a ironia do pleonasmo do título, não fosse Hollywood um sítio faz-de-conta), onde as aparências são mais importantes, e Tarantino parece reconhecer isso de duas formas: a forma como Sharon Tate surge no filme, figura angelical, luz que ilumina o filme e afasta as trevas, que como mito desaparecido antes do seu tempo fica mais na memória pela sua imagem do que pelas suas palavras; e a relação desigual entre o duplo de Pitt e o actor de DiCaprio: este paranóico e neurótico, com uma ridícula necessidade de aceitação e alheado em relação ao que se passa ao seu lado, como imagem de um mundo de fantasia, e o duplo que, apesar de tudo, parece ancorado numa realidade diferente. Mesmo as raparigas do culto Manson não são apresentadas como figuras simples, mas percebe-se que o interesse de Tarantino é em retratar uma masculinidade em desuso, nesta dupla obsoleta que é também espelho da mudança de um paradigma em Hollywood, da velha geração para a nova.
O filme, que durante bastante tempo parece investido numa aproximação fiel à realidade (um duplo foi mesmo assassinado no rancho, por exemplo) e na recriação histórica de uma época, volta a surpreender na sua conclusão. O que fica é o gesto de fazer um filme para salvar Sharon Tate, como reflexo da capacidade do cinema de corrigir a realidade. Que o faça ao mesmo tempo que constrói uma memória imaginada, isto é, fantasiada e tingida pela cinéfilia de Tarantino do que teria sido essa época, é algo de comovente e extraordinário.
João Araújo
Nos últimos anos tenho deixado, em banho-maria, uma pequena obsessão por um figurante do cinema clássico de Hollywood. Tem-se tornado, com os tempo, uma figura querida da qual nada sabia além da sua mera existência. Um homem sem grande importância mas, sabe-se lá porque raio, se infiltrou nos meus pensamentos para não mais os abandonar. Foi só este mês de Agosto, depois de anos de recorrências, que me despertou o desejo de melhor o compreender. Além de um levantamento generalizado sobre o homem, dediquei-me igualmente a perceber como eram tratados (do ponto de vista laboral, mas não só, também social e artisticamente) os extras, os stunts, e todos esses actores sem falas nem (grande) presença. Um livro elevou-se a bíblia, fornecido pelo carinhoso walshiano Duarte Mata, Hollywood Unknowns: A History of Extras, Bit Players, and Stand-Ins (2012). Nele, o seu autor, Anthony Slide, traça um percurso de maus-tratos, sonhos frustrados e contestações sindicais. Terminando com uma reflexão que acho bastante bonita: “[A] história do figurante de Hollywood é mais uma história de tragédia que de exaltação (…). Alguns figurantes tinham um entusiasmo sem limites e, pelo menos no início, uma crença em si e no seu potencial sucesso. Ao mesmo tempo, muitos iam trabalhar todos os dias – ou nos dias em que estavam empregados – porque ser figurante era um trabalho, um trabalho que os contentava e do qual não esperavam qualquer tipo de promoção.”
Eis senão quando estreia nas salas Once Upon a Time … in Hollywood, uma saudosa ode aos profissionais da sombra, em particular à figura do duplo [como, de certo modo, era também, Death Proof (À Prova de Morte, 2007), quiçá o melhor filme de Tarantino]. Há muita coisa em Once, e talvez haja até coisas de mais (muita piscadela de olho que faz com que o filme esteja sempre de olhos quase fechados e visivelmente estrábicos – cada olho a apontar para uma linha narrativa diferente, tornando o todo tão enfadonho quanto elegíaco), mas aquilo que me toca é esta história alternativa que mais do que se focar nos secundários (nos pormenores da história), faz deles os agentes da mudança. Tudo corre ao revés dos factos porque existe Cliff Booth (Brad Pitt), esse supra-sumo do olhar silencioso, da presença calada, da existência per se. Booth/Pitt está, e só por estar (por literalmente figurar, ali) ele perfura a realidade com uma lata de comida de cão atirada às ventas de uma estúpida meliante. Tudo seria diferente (ou melhor, tudo é diferente) se aquele borra-botas do estrelato, que está satisfeito em ser apenas o stunt de Rick Dalton, ali tivesse estado, se ali houvesse figurado (qual aparição na nossa senhora a uns pastorinhos mocados e armados com facas de cozinha). E mesmo assim é ele o único (dos bons) que sai fodido, como sempre assim foi e será para os figurantes (até no reino da fantasia).
Ricardo Vieira Lisboa