Falta pouco para o mundo acabar. O fim de tudo tem hora marcada: é às 4:44, depois disso nada, não haverá nem ódio, nem amor… talvez somente uma luz branca. Até lá, a humanidade perde a cabeça, regressa a vícios antigos, beija laptops em despedidas à distância, culpa os políticos pelas medidas que condenaram o planeta, mas fundamentalmente fode-se, reza-se, pinta-se um quadro, come-se um bife do tamanho de um prato… enfim, queimam-se cartuchos, consome-se o que resta da nossa humanidade, tenta-se dar um sentido à existência, a tudo isto, a este festival incessante de imagens em que se tornou a nossa vida. A luz branca tornará tudo, enfim, vão, inútil, sem nexo. Ninguém mais restará para recordar, mas pode ser que o amor dê asas de anjo a dois felizardos, que unidos pela imagem da serpente – símbolo da eterna renovação – subirão até aos céus para evitar que a mensagem morra.
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O apocalipse em Abel Ferrara está em todo o lado – recordo como o apocalipse, ou a noite mais abismal, era o cinema ele mesmo no estonteante Dangerous Game (Linha de Separação, 1993) -, mas sobretudo no que liga e religa as pessoas entre si. Daí que seja justo dizer que o realizador mais religioso da actualidade seja muito naturalmente também aquele que pensa mais profundamente o problema das mediações, o modo como este “PC world” está a substituir-se ao toque. Portanto, se há muitos ecrãs, laptops, televisores, vídeos de YouTube que poluem o espaço mental do filme, que tendem a assombrar a vida do casal que protagoniza o filme – este Adão e Eva do derradeiro fim -, também há o toque meigo e bruto, a carne que se acaricia ou devora, a voz rouca, trémula que faz interrogar sobre a melhor maneira de morrer e dizer adeus a tudo. 4:44: Last Day on Earth (4:44 Último Dia na Terra, 2011) permanece o mais apocalíptico dos filmes acerca desse projecto de mediação em falência chamado relações humanas, entre pais e filhos, entre homens e mulheres. O mundo é só distância aqui – a morte ecológica do planeta começa na morte da proximidade, do toque, da compreensão humana. Ferrara é o mais religioso e tecno-consciente dos cineastas? Mas também é, por causa ou apesar disso, o último dos grandes cineastas do corpo – o filme seguinte, o monstruoso Welcome to New York (Bem-Vindo a Nova Iorque, 2014), só vinha reforçar esta convicção.
Ferrara filma o fim e os fins do amor – o amor no seu auge – e ao mesmo tempo envia uma implacável carta de despedida a toda a humanidade. Coisa própria dos grandíssimos cineastas.
Que ruído é esse que produz o símbolo angustiante da dúvida que já não é dúvida, porque o fim é a única certeza? Na televisão, ouvimos – e vemos – Al Gore numa entrevista a Charlie Rose, imagens tão indistintas quanto familiares de rebeliões populares, grandes procissões religiosas, Dalai Lama a perorar sobre a ciência e a Natureza ou o real valor do dinheiro, um jornalista despede-se, para sempre, dos seus espectadores, etc. No computador, amigos e familiares aparecem para se despedir das nossas personagens, uns festejam, tocam música, cantam e dançam, outras lamentam ou apontam responsáveis pelo fim do mundo, outras assumem os preparativos para o serão, etc. Noutro monitor, passam vídeos sobre meditação e filosofia zen. Dispositivos encaixados noutros dispositivos, mediações de mediações, medi(t)ações sobre medi(t)ações… a teia de Ferrara, que bem conhecemos de dois outros filmes magníficos, The Blackout (Sentiste a Minha Falta?, 1997) e Mary (Maria Madalena, 2005). E, com ela lançada, o grande objecto de 4:44 é um teste, um teste que procura saber como é que aquele casal interpreta a acção catastrófica da informação que o cerca – mais até do que a catástrofe propriamente dita…
Esta confusão entre o mental e o real, entre a representação e o representado, entre informação e acção, está patente na poderosíssima cena em que Skye (Shanyn Leigh) apanha Cisco (Willem Dafoe) a falar com a ex-mulher. Skye ataca-os, agarra-o, agride-o fisicamente, enquanto tenta chegar ao monitor, onde vemos a ex-mulher de Cisco a rir, a gritar, um rosto gigante, grotesco, reduzido ao plano de uma máquina sem corpo. Noutra cena, o rapaz vietnamita que trouxe “a última seia” num saco de plástico beija o computador de Cisco depois de falar, via Skype, com a sua família. A tecnologia aparece, neste filme, como redução e desdobramento do mundo real, não sendo por acaso que o nome da protagonista (Skye) se confunde com o nome do próprio programa (Skype). Ferrara produz uma reflexão audaz sobre uma certa “tecno-religiosidade”, porquanto o ícone a que se presta devoção é-nos dado por uma superfície metálica, em forma de amêijoa (foi o outro guru zen da técnica, Steve Jobs, que inventou a analogia), que lá vai tornando o mundo uno ou, pelo menos, trabalha para pôr em funcionamento essa ilusão – o que podem as formas mais antigas de fé contra a tecno-religião da imagem, pela imagem, só imagem?
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A certa altura, no terraço, Cisco exclama qualquer coisa como: “Já estamos todos mortos”. De facto, é tudo uma questão de tempo, pois desde os primeiros instantes – a economia narrativa em Ferrara aproxima-o, por vezes, de um Bresson – a morte opera no interior destas personagens. Elas, em posse da informação que lhes chega, através da já mencionada multiplicidade de dispositivos mediáticos, remetem-se à meditação, dissecam sentimentos e reflectem sobre a possibilidade de haver escolha, temas que, noutro contexto, dir-se-iam puramente especulativos, mas que em 4:44 são debatidos como se fossem não parte, mas, precisamente, as únicas estratégias de sobrevivência que restam. É preciso salvar alguma coisa desta experiência louca que foi a humanidade? Sim, mas o quê? Um artefacto, um objecto de arte, um programa filosófico?
A ideia da “atitude certa” a tomar face à inabalável crença no “fim do mundo” – a dúvida aqui é também ela pura estratégia, ou é assim nitidamente encarada pelas personagens – torna-se uma angustiante não-ideia, precisamente, quando conceitos como os de “certo” e “errado”, “justo” ou “injusto” são reduzidos a pó ante a inevitabilidade deste assassínio cósmico “sem culpados”. Cisco tenta culpar alguém no início, mas vê que é infrutífero fazê-lo: “ninguém é culpado”. Apesar das aparições televisivas de Gore, o discurso de 4:44 surpreende-nos por não enveredar pelo demasiado fácil “somos todos culpados”, típico da retórica dos movimentos ambientalistas. Não, o que a personagem diz e sente é: “ninguém é culpado”, não há culpados, isto é, nem o fardo da culpa poderemos carregar na grande “hora do lobo”, ou melhor, nem a culpa nos distrairá do essencial desta suprema experiência religiosa de morrermos juntos como espécie – Deus fecha a “concha” como as personagens bruscamente desligam o computador na hora de dizerem “bye, bye” para sempre. O software Deus que a todos nos liga vem, na luz branca (o branco que é todas as cores e nenhuma ao mesmo tempo), para reiniciar tudo, desta feita, na nossa ausência. Ferrara filma o fim e os fins do amor – o amor no seu auge – e ao mesmo tempo envia uma implacável carta de despedida a toda a humanidade. Coisa própria dos grandíssimos cineastas. Abel Ferrara – 4:44 também existe para nos lembrar – é um grandíssimo cineasta.
4:44 Last Day On Earth é um filme disponível na plataforma de VOD nacional, Filmin.