É a história de dois puros-sangues. Do cavalo Suão e do seu dono, João Fernandes (imponente Albano Jerónimo, cigarrilha ao canto da boca e um discurso lacónico a fazer lembrar Clint Eastwood), um burguês rural ribatejano arquetípico, casado com uma das filhas do director da DGS (a anterior PIDE).
A acção de A Herdade tem lugar em três tempos históricos: abertura com enforcamento na década de 1940, outra parte muito substancial em 1973, nas vésperas e no período que se seguiu à revolução, e um terceiro momento que se passa no ano de 1991. O cavalo é-nos mostrado ao mesmo tempo em que pela primeira vez vemos João Fernandes já adulto, que recebe na sua propriedade a visita de um ministro marcelista e do seu assessor, que em nome do governante de Portugal vêm pedir que ele torne público o seu apoio à guerra colonial. A família Fernandes é proprietária de uma área vastíssima de terrenos agrícolas e de acordo com um dos modelos sociais praticados à época, tem os trabalhadores a viver na propriedade onde em troca do trabalho no campo recebem um pagamento exíguo mais alojamento e habitação.
João Fernandes não corresponde ao estereótipo do latifundiário irascível, trata-se de um homem de valores e princípios antigos, que age em defesa do que é dele e que um dia deseja legar aos filhos, e que se resigna aos compromissos dos novos tempos (quando os bancos se tornam seus credores), mantendo a lealdade dos que para si trabalham. A lealdade é um elemento-chave no filme de Tiago Guedes, porque em nome dela existem laços que se mantêm tempo de mais, segredos nunca verdadeiramente guardados que alimentam ressentimentos, e hierarquias que serão postas em causa quando a pequena organização patriarcal vai ganhando porosidades que decorrem das mudanças ocorridas no país e da renovação das gerações.
A Herdade é um filme sobre a derrota do mundo rural, de uma particular e telúrica nobreza de carácter, pelo movimento da história e pela implosão familiar.
A ligação entre João Fernandes e o seu cavalo mais estimado tem o valor simbólico de dar a ver o animal como o duplo do seu dono. Eles fazem um só corpo quando Fernandes sai a galope pela noite, altura em que tudo fica mais indistinto, e ele talvez procure o conforto nos contornos abstractos da paisagem onde nasceu e se criou, mas também onde viu a morte pela primeira vez, no que implicou que se fizesse homem mais depressa.
O jogo simbólico é uma das qualidades do argumento escrito por Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes (em colaboração com o experimentadíssimo Gilles Taurand), que nos pode levar a perguntar qual a obra literária que terão eles adaptado (o cenário, o protagonista e as dinâmicas sociais podem sugerir uma revisitação em décadas posteriores de Barranco de Cegos, de Alves Redol, ou um pós-Delfim, incorporando Cardoso Pires). A qualidade da escrita é impressionante, no rigor das palavras e no número rigoroso de palavras utilizadas. Este efeito de subtracção contagia todo o filme. A capacidade de escapar ao lugar-comum é assinalável. Aquilo que fica elidido nos diálogos e até nas imagens e que o espectador completa é essencial para reconhecer esta rara capacidade de escrever para cinema, que diríamos oferecer depois uma disciplina ao trabalho com os actores e da própria planificação.
São duas horas e quarenta e cinco minutos de uma saga familiar sob influência da história portuguesa da segunda metade do século XX, que nos reenvia, salvaguardadas as diferenças de modelos de produção, para um cinema de outro tempo numa outra geografia: o Coppola dos Padrinhos, o Visconti do Leopardo, o Bertolucci do 1900, com a perfeita noção da escala e dos valores de produção ao dispor, tudo articulando sob o mesmo princípio da subtracção, da contenção, da interioridade que tanto se aplica às personagens como à paisagem rural.
A Herdade é ainda um projecto muito pessoal e de longa gestação do produtor Paulo Branco. Alguns episódios do filme têm origem em coisas que o próprio viu ou de que ouviu falar. Branco está no seu território. No seu habitat. A qualidade da reconstituição pode até assentar maioritariamente na preservação dos espaços tal como sempre foram, o que não diminuiu em nada a sensação de que percorremos áreas habitadas que acrescentam verosimilhança. A câmara de Tiago Guedes adapta-se a elas com pontuações discretas, notas subtis de fôlego romanesco que ganham significado justamente por serem escassas, lidando com a ausência total de som não diegético (o filme tem música de Arvo Pärt no genérico de início; encerra com uma peça de Charles Ives que acompanha os créditos finais, e é só) para se abrir aos sons da natureza, do vento e da noite, e às fontes sonoras que funcionam como pano de fundo do tempo histórico.
A Herdade é um filme sobre a derrota do mundo rural, de uma particular e telúrica nobreza de carácter (não isenta de traumas), pelo movimento da história e pela implosão familiar. Simbolizada nos momentos derradeiros, de estarrecer, onde o cavalo Suão e o homem que com ele fez corpo agonizam alienados um do outro, perdendo-se para sempre a última razão de existirem.