Parece tirado de uma anedota, mas é verdade. A principal razão pela qual Amazing Grace (2018) demorou quase meio século a estrear, a grande causa que fechou para sempre a ambicionada porta de entrada de Aretha Franklin para Hollywood, foi o facto de, pura e simplesmente, nem Sydney Pollack nem a sua equipa se terem lembrado de levar claquetes para as gravações do concerto do epónimo álbum ao vivo, feito numa igreja baptista de Los Angeles em 1972 (“os problemas técnicos” a que os créditos iniciais timidamente se referem). Este pequeno lapso, que nem na segunda das duas noites em que o evento ocorreu foi remendado, levou a que 20 horas de material filmado não tivessem uma referência na pós-produção a fim de ficarem sincronizados com o som. Especialistas em leitura labial foram convocados para verem os milhares de metros de película gravada, mas os resultados foram nulos, e o filme viu-se forçado ao abandono nos cofres da Warner Bros. As décadas passaram, as tecnologias digitais surgiram, e Amazing Grace adquiriu finalmente uma forma acabada pelo produtor Alan Elliott, que ficou também com o crédito de co-realização para um filme gravado quando ainda só tinha 8 anos de idade, num evento em que nem sequer compareceu. Parto deste erro de amador, revelador da falta de preparação de Pollack para o projecto desde o começo, para referir aquilo que verdadeiramente mais me entusiasma no filme: a imprevisibilidade.
Imprevisibilidade porque os operadores de câmara movimentam-se e apanham-se sem medos uns aos outros e aos assistentes de iluminação com as suas bandeiras, fazendo com que o documentário seja simultaneamente quase o seu making of, oscilando entre o filme-concerto e o cinema verité. Imprevisibilidade porque deve ser um caso único na história dos filmes-concerto onde vemos o seu realizador (Pollack, encasacado e de suíças farfalhudas) a gesticular desenfreadamente para a câmara, a fim de pedir ao operador que capte um plano geral da audiência. Imprevisibilidade tanto porque vemos Mick Jagger a dançar do nada como porque ainda mais do nada alguém se coloca à sua frente, criando um efeito cómico inesperado no impedimento do registo do êxtase do cantor.
A espontaneidade e falta de controlo na produção, este lado cru e buliçoso forçado pela falta de planeamento, fazem com que Amazing Grace se trate de um objecto cinematográfico atípico na carreira de Pollack.
Esta espontaneidade e falta de controlo na produção, este lado cru e buliçoso forçado pela falta de planeamento [estamos longe, muito longe do jogo de luzes atmosférico e posicionamento rigoroso da câmara pré-planeados no argumento de 200 páginas por Scorsese para o superlativo The Last Waltz (A Última Valsa, 1978)], fazem com que Amazing Grace se trate de um objecto cinematográfico atípico na carreira de Pollack, estando nele completamente em falta o ritmo enfadonho e realização académica que caracteriza boa parte do seu “cinema do papá” americano. Dito de maneira simples, o Pollack negligente, mas dinâmico, de Amazing Grace parece-me mil vezes mais interessante que o Pollack profissional, mas tão aborrecido, de Jeremiah Johnson (As Brancas Montanhas da Morte, 1972), The Way We Were (O Nosso Amor de Ontem, 1973), Three Days of the Condor (Os Três Dias do Condor, 1975) ou de Out of Africa (África Minha, 1985). Sobretudo o de Out of Africa.
É então com esta bem-vinda energia e turbulência visual na alteração abrupta de escalas, nas panorâmicas tremidas, na versatilidade dos ângulos obtidos em enquadramentos insólitos, ora feitos junto ao chão, ora em cima de escadas, ora bem afastados, ora fascinados pela textura da pele, que assistimos às intervenções humorísticas do carismático mestre de cerimónias James Cleveland (“se me virem a andar irrequieto por aí é porque estou a fazer de tudo para ser apanhado pelas câmaras”), ao comovente discurso de amor paternal com o pai de Aretha a falar da dedicação da filha à música já na infância, e a toda a experiência comunal, eufórica, catártica e transcendente que caracterizam os concertos mais memoráveis.
Há um espírito de equipa que é bonito de se ver naqueles planos de conjunto do coro, uma sensação de união colectiva nos variegados enquadramentos da audiência que gradualmente se emociona, uma sintonia espiritual cinematograficamente percepcionada naquele diálogo “encenado” pelo split screen, com Cleveland no lado esquerdo ao piano a cantar, e a cantora no direito junto ao microfone a responder-lhe. Tudo isto mostra como Elliott soube apropriar-se, seleccionar e organizar cuidadosamente o material herdado de Pollack, mas um gesto igualmente astuto está no facto de ter optado por não acrescentar entrevistas ou planos exteriores após os créditos iniciais, obrigando o filme a ficar concentrado espacialmente na igreja e temporalmente naquele par de noites, algo fundamental para não quebrar a imersividade da ilusão, para manter a porta fechada da máquina do tempo onde viajamos de forma (felizmente) atribulada e, mais uma vez, imprevisível.
E, como não se pode deixar de referir, há os planos fechados do rosto de Franklin, que mais não faz do que cantar e entregar-se por completo às câmaras, à audiência, à música e ao cinema. Não precisa de mais, basta soltar a sua voz confiante, incandescente, melíflua e penetrante, à medida que as suas expressões faciais revelam os anos de dedicação e de trabalho na música gospel, a fé que demonstra ter nas palavras que grita, para ficarmos convencidos do singular talento e poderosa presença que continha. E se por ventura o espectador sentir a sua atenção desviada pelo suor da cantora, lembre-se da resposta que Orson Welles deu durante a rodagem de The Lady from Shangai (A Dama de Xangai, 1947), quando um assistente lhe disse que Rita Hayworth suava num plano: “Os cavalos suam. As pessoas transpiram. Miss Hayworth brilha.” E assim brilha miss Franklin.