O mistério das coisas, onde está ele? / Onde está ele que não aparece. / (…) / Porque o único sentido oculto das coisas/ é elas não terem sentido oculto nenhum, / É mais estranho do que todas as estranhezas / E do que os sonhos de todos os poetas / E os pensamentos de todos os filósofos, / Que as coisas sejam realmente o que parecem ser / E não haja nada que compreender.
“O Guardador de Rebanhos – XXXIX – O mistério das coisas, onde está ele?” de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
Campo (2019) começa no breu, por entre as texturas tortuosas da noite do cinema, cheia de grão, num manto vivo de pontos saltitantes onde tudo se anima na possibilidade da imagem digital em movimento. Um rendilhado electrónico de partículas, sensores e pedaços binários de informação, como antes eram as superfícies sempre diferentes de cristais de prata oxidados na aleatoriedade irregular de cada fotograma de celulose (ou outro suporte) – que muito se assemelha a um convulso céu estrelado. Nesses primeiros momentos nocturnos do filme, onde camadas de névoas compõem a paisagem, torna-se – literalmente – visível a natureza do projecto de Tiago Hespanha. Trabalhar o plano nas suas três vertentes semânticas: a gráfica, a estratégica/conceptual e a cinematográfica.

A narração de Hespanha, que preenche e cose grande parte deste documentário, é dada à linguística. Aliás, a sinopse oficial do filme (escrita na primeira pessoa, pelo realizador) inclui a origem da palavra “campo”. De facto três são os campos referidos e retratados: o campo agrícola – dado ao bucolismo, às ovelhas, aves e répteis, ao vento, à terra e às plantas; o campo de batalha – o filme foi rodado e retrata a base militar de Alcochete, a maior da Europa, com os seus exercícios bélicos de faz-de-conta; e o campo visual – onde a observação de animais e, especialmente, dos astros, é central na mitologia cósmica (guzmániana) que a voice over convoca. Daqui resulta um filme que oscila entre registos, como entre registos está a própria realidade do espaço que documenta.
O olho de Hespanha tende para o pictórico, delicia-se com a composição, com as texturas e com as manchas de cores.
A fábula suburbana e o conto de fadas silvestre contrastam com a epopeia natural e a sinfonia rural. Também o documentário observacional à Wiseman choca com o olhar telúrico, mas igualmente silencioso (à Frammartino). As incursões ficcionais e semi-ficcionais pelo filme de guerra parecem opor-se aos retratos naturalistas de rostos na paisagem. E as caricaturas quase patuscas das personagens exóticas que atravessam os baldios (à Gomes): o ornitólogo de alfama com ouvido absoluto para os piares; os filósofos do cosmos a discutirem a origem da existência como conversa de café; o adolescente melómano fascinado por ficção científica; o meu primo Mário afundado num charco em busca de bichos viscosos; os aeromodelistas, etc. Todos estes enfrentam os momentos de genuíno interesse, enquando a voz do realizador surge, curiosa, perguntando o porquê e o como das coisas que surgem (à Herzog).
Essa multidisciplinaridade de géneros narrativos e áreas do conhecimento e essa pluralidade de modos de ver e de dar a ver resulta, essencialmente, da já referida narração. Mas se se passarem os olhos pelos créditos do filme encontramos mais de meia dúzia de directores de fotografia e operadores de câmara. Composto a partir de textos de origens diversas, este delírio cut-up (a dimensão conceptual – o plano nada oculto do filme) inclui textos diversos como o relato do primeiro voo de balão, realizado pelos irmãos Montgolfier, o poema de Alberto Caeiro em epílogo, o relatório da primeira viagem de um homem ao espaço, por Iuri Gagarin, Pale Blue Dot de Carl Sagan, Prometeu de Franz Kafka, diversas versões dos mitos gregos, entre outros. Ou seja, o texto (entenda-se, a narração) procura dar cores e profundidades à complexidade daquele microcosmos social a-plana-do pela objectiva da câmara de filmar.
O olho de Hespanha tende para o pictórico delicia-se com a composição, com as texturas e com as manchas de cores (aqueles tiros na noite, deixando rastos expressionistas de luz). Poucos, ou quase nenhuns, são os planos com grande profundidade de campo (a imagem é plana). A dimensão plana dos enquadramentos é uma componente plástica que caracteriza as imagens do filme. A composição é sempre elegante sem ser vistosa, e os momentos mais tocantes são aqueles em que se rompe a distância bucólica e observacional e, de repente, entra o realizador no enquadramento para saber da saúde de uma ovelha. Esse plano, em que o pastor tenta, em vão, salvar o borrego e a sua mãe, durante o parto, é belo exactamente porque a perfeição da composição é perfurada pela humanidade do realizador que “estraga” a dramaturgia naturalista por impulso empático.
“As coisas não têm significação: têm existência. / As coisas são o único sentido oculto das coisas.” Assim termina o referido poema do heterónimo pastoral de Fernando Pessoa. Pena que Campo o inclua juntamente com o misticismo panteísta que evoca repetidamente (“vi a vida manifestar-se nas suas dimensões mais contraditórias e misteriosas”). O que não deixa de ser coerente, já que todo o filme se constrói em sucessivos paradoxos: onde no “início era o caos e não havia nada” até ao final, em que a eternidade se aborrece de eternizar e a ferida sara pelo cansaço.
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[…] Branco que tem deixado a sua marca em quem a viu. O cinema português estará em estado de graça? Campo (2019) de Tiago Hespanha também desperta curiosidade e interesse neste Palatorium. Destaca-se […]