O À pala de Walsh presta homenagem ao recentemente falecido Professor Carlos Melo Ferreira, autor de várias obras sobre cinema e com uma longa vida dedicada à leccionação, com uma selecção de passagens marcantes dos seus livros segundo as leituras dos nossos especialíssimos convidados: Inês N. Lourenço, José Oliveira e Sérgio Dias Branco. A cada um deles endereçamos o nosso profundo agradecimento.
A crítica da casa e do Diário de Notícias, Inês N. Lourenço, dá expressão à afeição especial do Professor pelos grandes clássicos, começando, claro, por aquele forjado durante a era dourada de Hollywood.
Este filme, que é um magnífico poema sobre a aviação de guerra e sobre a amizade viril, sobre a solidariedade dos homens em combate, é também uma tragédia com todas as características clássicas em que os homens, manipulados por forças que os excedem e que não se vêem (só Brand, no final, lhes dá um rosto, ao trazer as ordens e instruções para a missão mais arriscada), caminham para um destino em que acabam por, uns a seguir aos outros, dos mais experientes aos menos experientes, mas especialmente estes, encontrar na morte o fim do seu caminho. Mesmo a aceitação por um veterano da missão mais arriscada e o cumprimento dela por outro veterano têm a grandeza do assumir de um destino que se enfrenta até às últimas consequências. Um destino que é assumido como um desafio.
A partir do seu primeiro filme sonoro, Hawks mostra que só os anjos têm asas e que, precisamente por isso, só eles caem.
Cinema Clássico Americano – Géneros e Génio em Howard Hawks, Edições 70, 2018.
Explica-nos então Inês o porquê da selecção do seguinte modo: “Abri Cinema Clássico Americano – Géneros e Génio em Howard Hawks, folheei e deparei-me com esta descrição de The Dawn Patrol (A Patrulha da Alvorada, 1930), que tinha, não sublinhado, mas emoldurado a lápis firme na página. Em apenas um parágrafo, seguido da belíssima frase-remate do texto, Carlos Melo Ferreira resume a obra inaugural do sonoro em Hawks com a assertividade de um conhecedor e a minúcia de um ourives do pensamento cinematográfico. Em fundo, ‘ouvem-se’ os aviões.”
O programador, crítico e cineasta José Oliveira é um dos responsáveis pela programação do cineclube de Braga, Lucky Star, que programa este mês um ciclo de homenagem ao Professor, com alguns dos filmes que este mais adorou amar. José conviveu de muito perto com Carlos Melo Ferreira e é, acima de tudo, um conhecedor profundo do seu pensamento. O desafio de escolher só uma passagem era não só insuficiente como injusto. Como tal, desta participação resultaram dois recortes.
Permanecem, como em Boudu, como em Partie de campagne, os beijos roubados, um erotismo à flor da pele, uma alegria de viver mesmo quando se sabe que à noite vai chover, uma sensibilidade à beleza da mulher, com esplêndidos momentos de cinema e um ritmo muito marcado, em geral rápido, que fazem com que o filme constitua momento memorável não só da série em que se insere mas de toda a obra de Truffaut.
Truffaut e o Cinema, Edições Afrontamento, 1990.
O nosso convidado justifica a escolha desta passagem da seguinte maneira: “Truffaut foi sempre um dos favoritos do professor Carlos Melo Ferreira, que ele viu ao vivo a atravessar uma rua acompanhado por João Bénard da Costa em direcção à Livraria Bertrand do Chiado aquando de mais uma vinda a Lisboa do mais apaixonado homem da Nouvelle Vague, desses que se consumiram nas paixões intensas demais. Certa vez o Carlos disse-me que estava farto de escrever sobre cinema e que gostava de experimentar outras coisas. Desconfio, ou assim esperava eu, que fosse de cabeça ao romance, pois muito do que ele escreveu extravasou a crítica distanciada em direcção às penas queimadas e esvoaçantes de Balzac.”
São filmes como este que justificam que se tenha ido e continue a ir ao cinema, na esperança de encontrar aquele momento absolutamente insólito em que nos sentimos transportados para o interior de alguma coisa apesar dela própria, e consequentemente arrastados para fora de nós. Este é um daqueles infelizmente raros filmes de que saímos sem conseguir articular a palavra cinema, precisamente porque do cinema faz um uso que o excede. Ora é para além das habituais águas-mornas e das naturais obras-primas que o cinema, seguindo a inspiração de Robert Bresson ou de outro qualquer, nos pode levar, transformando-se, assim, em vez de um vício num estímulo que nos desperta, para além de qualquer conforto ou consolação: nem o da arte, nem o da poesia, nem o do cinema.
Poéticas do Cinema: A Poética da Terra e os Rumos do Humano na Ordem do Fílmico, Edições Afrontamento, 2004.
José Oliveira explica o recorte: “Na recente exposição Pedro Costa: Companhia que decorreu em Serralves, Carlos Melo Ferreira contou a todos, a propósito do seu livro dedicado a Costa, que da primeira vez que foi assistir ao No Quarto da Vanda (2000), num cinema que já não existe, lhe aconteceu algo inaudito: saiu da sessão, fumou um cigarro, e comprou bilhete para a seguinte. Antes das carradas de ouro com que Locarno decidiu consagrar oficialmente o nosso grande cineasta, despertando consciências mortas, já CMF o colocava entre os maiores dos maiores; para lá do cinema, entesourado na vida.”
O Professor Sérgio Dias Branco envereda pela ontologia da imagem cinematográfica segundo um Carlos Melo Ferreira apoiado nos ombros de um dos maiores poetas da língua portuguesa.
Qualquer poema é um filme, e o único elemento que importa é o tempo, e o espaço é a metáfora do tempo, e o que se narra é a ressurreição do instante exactamente anterior à morte, a fulgurante agonia de um nervo que irrompe do poema e faz saltar a vida dentro da massa irreal do mundo.
As Poéticas do Cinema: A Poética da Terra e os Rumos do Humano na Ordem do Fílmico, Edições Afrontamento, 2004.
Sérgio Dias Branco explica a escolha assim: “É uma passagem de As Poéticas do Cinema: A Poética da Terra e os Rumos do Humano na Ordem do Fílmico que cita o livro Photomaton & Vox de Herberto Helder. Citação de citação, quer dizer, cruzamento de vozes, esta é a primeira referência utilizada neste estudo que foi a tese de doutoramento de Carlos Melo Ferreira. Para discutir a dimensão artística do cinema, que ele associa às suas qualidades poéticas, Melo Ferreira não recorre a um teórico do cinema, mas a um poeta que reflecte sobre a sua arte. Trata-se de uma recusa de isolar o cinema, de o fechar sobre si próprio. O sentido parece ser este: há filmes que são poemas, nos quais o tempo é decisivo e transposto para o espaço, revelando o cinema como arte ligada à terra, ao clarão ansioso da vida humana no interior da irrealidade mundana.”
Todas estas selecções são um convite à (re)descoberta do pensamento plural e da voz apaixonada – e apaixonante – deste “homem cinema” que não desapareceu e não desaparecerá. Até sempre, Professor.