O Verão está a chegar ao fim, mas o calor só agora parece ter chegado. Depois da pausa estival os walshianos voltam à carga e recuperam a matéria dada dos últimos dois meses neste blister de cápsulas revestidas (para uma absorção mais lenta). Os destaques de Julho e Agosto são então: o terror adolescente que é ” ama das boas surpresas do ano”, o saudável fanatismo musical por Bruce Springsteen, o dilema moral do revisionismo histórico de Quentin Tarantino, o rolo compressor da escrita erudita em Dragged Across Concrete (Na Sombra da Lei, 2019), e as latinhas gourmet que flutuam na lixeira do mais recente filme de Brian De Palma.

Na realização estava um nome algo sobrestimado, que pelo menos a mim ainda não me havia aquecido ou arrefecido: André Øvredal. Depois, havia todo um sentimento de descrença a envolver a exibição deste filme, que dava a entender que queriam fazer com ele o que normalmente os mais desleixados e preguiçosos fazem com a tarefa de varrer o chão: atiram a porcaria para debaixo do tapete, na esperança de que ninguém dê por isso. Um filme “de Halloween” estreava em pleno Agosto, com críticas contraditórias, mas globalmente pouco entusiásticas. O meu espanto foi, então, crescendo à medida que o filme ia desenrolando o novelo narrativo, isto é, “as suas histórias assustadoras para contar no escuro”. Esta obra vem – parece-me claro – na senda de um regresso nostálgico que Hollywood tem empreendido à fórmula eighties de um terror coming-of-age. Podíamos, portanto, encontrar aqui uma variante apressada do que correu bem com o primeiro e auspicioso It (2017).
É verdade que, na sua concepção, não estaremos muito longe da aplicação algo martelada da tal “fórmula de sucesso” em modo redux, mas Scary Stories to Tell in the Dark vai, muitas vezes, mais além do que se poderia esperar, nomeadamente quando transforma as suas várias narrativas numa reflexão impressiva sobre “os desconfortos do corpo”. Portanto, se é verdade que há um gostinho The Goonies (Os Goonies, 1985), também é verdade que sentimos uma comichão a The Thing (Veio de Outro Mundo, 1982) e um zunzum a The Fly (A Mosca, 1986). Dedos do pé no guisado, borbulhas gigantes prontas a rebentar e de onde sai um magote de insectos peludos, aparições bulbosas que se deslocam ao ritmo do corte do filme e de modo imparável (J-Horror style), um monstro proteiforme com a sede de sangue de um cão raivoso… o bestiário é fantástico por precisamente nos falar – e meter o dedo na ferida – a partir dos desconfortos e convulsões do corpo. O coming-of-age bonitinho é afinal uma obra saudavelmente nojenta sobre as transformações do corpo e, nesse sentido, o conto de horror ideal para o “próximo adolescente” e para o adolescente que já fomos ou nunca deixamos de ser. Uma das boas surpresas do ano.
Luís Mendonça

Talvez num dos textos mais interessantes sobre Once Upon a Time in… Hollywood de Tarantino, Jeet Heer do The National coloca a hipótese de que este filme, à semelhança de anteriores filmes como Inglourious Basterds (Sacanas Sem Lei, 2009), são puras ficções científicas. Expandido o entendimento clássico que temos por “ficção científica”, Heer relembra que as teorias em torno dos universos paralelos, assim como da reescrita histórica são parte inegável do género. No entanto, este relembra o que tais hipóteses acarretam ao ficcionalizar determinados momentos históricos onde a sua reescrita ou excessiva liberdade perante os seus intervenientes pode significar o apagamento real da história. E este é o maior problema dos filmes de Tarantino, porque independentemente da nobreza do gesto que cada filme seu constitui, assim como da inegável justa posição em que este se coloca, há o risco permanente de que a história seja reescrita através do cinema. Se Tarantino procura inverter a pulsão da máquina de escrita clássica hollywoodesca, destronando a linhagem de Griffith a Ford que erigiram através do cinema a história oficial americana, não deixa por isso de ser o seu reverso. E este reverso mais do que uma redenção histórica, é a criação de uma outra narrativa moralizante sobre o acontecimento.
Este segundo ponto é crucial, porque por cada fabricação histórica alternativa há uma assunção por parte de Tarantino de que ele é o redentor. Numa atitude profundamente maniqueísta, Tarantino invoca um a um, opressores e oprimidos, delineando a traço grosso, entre maus e bons, e exercendo com a mesma violência a “correcção” dos acontecimentos. O que no entanto causa um problema ao atacar Tarantino, porque este ao retratar nazis, esclavagistas ou hippies assassinos impede que possamos apontar o papel moralizante deste. Para “atacar” Tarantino teríamos de adoptar a posição “mas…” os nazis, os esclavagistas ou os hippies assassinos não foram assim tão maus, o que torna automaticamente inviável o nosso argumento uma vez que, efectivamente, estes foram os carrascos da história. É um castelo difícil de desmontar e Tarantino sabe-o. Por isso chega a cada canto da história de capa e espada, evocando o papel de super-homem, pronto a resgatar Sharon Tate, os escravos ou os judeus perseguidos. Ainda assim, há quem tenha melindrado este castelo. Talvez naquele que é o mais belo texto de crítica cinematográfica dos últimos anos, Kent Jones para a Film Comment, responde às declarações de Tarantino sobre John Ford e relembra todas as zonas de sombra que há nos filmes do realizador clássico. Porque Tarantino, tão habituado que está em separar para castigar os maus da história, ele próprio tornou-se “intolerante” para com aqueles que ele considera os “outros”. Esta distinção entre Tarantino “himself” e os “outros”, faz denotar uma certa soberba camuflada de justiceiro e, sobretudo, tornou Tarantino incapaz de distinguir até onde se pode colocar um final alternativo a uma história e até que ponto a justiça dos bons sobre os maus não comunga da mesma violência.
Bernardo Vaz de Castro

Outro filme sobre um outrora herói de Hollywood que agora tem de lidar com a questão da sua decadência física? Não! Chega! Agora a sério, o problema de Dragged Across Concrete não é, como tem sido apontado, o gratuito da violência. Não é sequer uma falta de moral de alguém que procura promover a sua radicalidade à custa de uns esboços de personagens. O problema, parece-me, está na desproporção entre a qualidade da escrita na boca das personagens – inteligente, com humor, sofisticada – e o mundo emocional que as faz acompanhar. As suas motivações, os seus dilemas são os de um analfabeto, mas expressos através de um letrado de Harvard. Problema? Sim, porque se percebe que Craig Zahler não quis trabalhar esse contraste. Simplesmente, puxou demasiado o lençol de um lado e depois ficou com os pezinhos descobertos durante a noite. É por isso que o filme provoca um sentimento agridoce: ele parece estar a mostrar-nos um conjunto de momentos tensos, delicados e elaborados, mas depois percebemos que esses momentos só valem por si e que tudo à volta abana que nem papelão usado. Exemplo: é porque assistimos a uma rápida cena de bullying que somos obrigados a concluir que o herói vive numa zona fodida e que a sua filha está em perigo e que por isso deve arriscar anos de honestidade sem prémio, por um momento de desonestidade compensadora. Apressado no mínimo.
A supostamente famigerada sequência do bebé não tem, creio, uma intenção de sadismo. Não é que Craig se tenha transformado no Marquês de Sade e queira derramar o sangue de cordeiros inocentes para gáudio de espectadores insensíveis. Trata-se tão só de uma ideia esboçada e mal concretizada: a ironia dos pequenos grandes dilemas da nossa vida ante o repentino da morte. Não é uma ideia sequer muito inovadora, mas como surge de chofre a meio do filme ela transmite menos aquilo que pretende e muito mais a faceta do grande manipulador insensível que prepara carne para ser picada ante o rolo compressor dos acontecimentos. A mesma coisa com a violência excessiva dos criminosos. Ela não é tanto o símbolo de uma sede de violência gratuita mas mais a incapacidade de pensar uma ideia outra que não seja o cliché do mal sem rosto, da má acção sem consciência. Em resumo, parece que Craig Zahler encontrou um set up, uns esboços de personagens, mas quando poderia ter trabalhado no refinamento das suas acções e motivações, preferiu dedicar-se ao seu talento para a escrita. O que nos deixa numa posição de apreciação do estilo de certos momentos do filme, mas com o coração mais ou menos intocado quando tudo termina.
Carlos Natálio

Sou apreciador devoto, e confesso, de um bom acidente de estrada. Desses com miolos esmigalhados pelo asfalto, membros decepados, chapa torcida como papel e estilhaços de vidro ensanguentados. Escrevo-o enquanto viajo na auto-estrada sem cinto (o que parece um epílogo de um dos Final Destinations). Escrevo-o também com a consciência perfeita que o vómito me surgiria depressa, caso presenciasse tal cena: o cheiro quente do sangue sempre me agoniou. É portanto, um prazer mental este que tenho pelas coisas mórbidas. Algo que rapidamente se desfaz perante a realidade do horror (e o horror da realidade…). De certo modo, o processo diante de desastres de viação cinematográficos é semelhante: o mesmo fascínio mórbido que se desmorona no face-a-face com o filme. No entanto, não há nenhum desaire cinéfilo que me agonie e o elogio da falha sempre fez parte da minha caixa de ferramentas crítica. Não no sentido da politique des auteurs (de que o pior filme de um cineasta autor era sempre melhor que o melhor filme de um cineasta tarefeiro), antes no sentido de que é no acidente que se revelam os intentos falhados, os desejos iludidos (ou meramente aludidos) e os sonhos frustrados. Ver esses filmes menores, quase sempre martirizados pelos processos de produção, é uma gesto de respiga, de aproveitamento daquilo que, tantas vezes, o próprio realizador rotulou de lixo. É um trabalho que envolve mergulhar, bem fundo, em detritos infectos em busca do frasco de tomate seco do Lidl, perdido entre a folha de couve e a carne picada azeda. Foi assim com o mal compreendido Corrupção (2007), não assinado por João Botelho, e é assim com o último filme de Brian De Palma, Domino.
Só que, ao contrário doutros casos, as conservas gourmet estão aqui bem ao de cima da pilha de lixo. Não é necessário sujar muito, ou nada, as mãos para as agarrar. Domino é falhado, sim, mas não o é mais que tantos outros filmes falhados de De Palma, cineasta da máxima inconstância, porque dono de um cinema sempre dado aos excessos. E tão excessiva é a sua glória quanto a sua queda – aliás, mil vez uma queda excessiva que os filmes que tendem a figurar no seu panteão de “bons” filmes, onde “bom” é eufemismo de académico ou morno. Domino é um desses filmes a que, muito acertadamente, houve alma engenhosa que resolveu nomear de euro-pudim: estranhas co-produções europeias que arrebanham países para montar um orçamento, e a cada país impõe-se uma condição – locais de rodagem, língua falada, actores escolhidos… Daí resultam algumas das suas cenas mais confrangedoras: como a confissão íntima junto ao bucólico moinho de postal, os péssimos actores secundários, ou a passagem sem qualquer propósito narrativo por Bruxelas (ou a ponta, mal atada, da empresa de transporte de frutas, que resulta num desenlace que desafia a dedicação do mais compreensivo dos espectadores). A isso junta-se uma quase cómica sucessão de armas de fogo perdidas, que parece ser simultaneamente preguiça na escrita do argumento e um qualquer comentário freudiano sobre a (im)potência do protagonista. Mas entre o riso indesejado e o embaraço surge esse contra-picado à mesa de jantar com as cruzes na parede, esse zoom no espelho/ecrã de telemóvel, a hitchcockiana perseguição de algerozes, o extraordinário split screen da assassina suicida (que revemos em versão campo-contra-campo no final, na montagem dos terroristas – De Palma a “chamar” de terrorismo cinematográfico a montagem televisiva), o silêncio azulado ao ralenti em montagem paralela com a tourada explosiva ao som do Bolero de Ravel (ufa!), etc. Como negar todas estes frascos e latinhas deliciosos que flutuam, hermeticamente selados, no fétido caldo em putrefacção? Sai uma conserva de cavala em água do mar com meia dose de miolos esparramados para a mesa cinco, oh sachavor.
Ricardo Vieira Lisboa

Para um fã hardcore de Springsteen, o nome de Sarfraz Manzoor poderá não ser estranho. O jornalista do The Guardian, filho mais novo de uma família de imigrantes paquistaneses, descreveu já várias vezes a experiência da sua adolescência na Inglaterra thatcherista, altura em que fundamentava a sua identidade pessoal pela música de Bruce Springsteen e desafiava os valores tradicionalistas defendidos pelo pai. O seu trabalho mais famoso é o livro Greetings from Bury Park (o título é um jogo de palavras com o do primeiro álbum de Springsteen, Greetings from Asbury Park, em ambos os casos, referências ao sítio que os viu crescer), um sincero gesto de agradecimento ao cantor por tudo o que lhe havia dado numa altura em que se sentia tão desajustado do país como da própria família. É um livro magoado, sem a reconciliação assegurada, disperso temporalmente num registo não-linear de 3 décadas, encarando mais frontalmente a pobreza, a mortalidade, as tensões familiares e o medo do atavismo cultural do que o filme ao qual serviu de inspiração, Blinded by the Light (Blinded by the Light – O Poder da Música, 2019). Mas que não seja por isso que se prefira um ao outro. Apesar das divergências de tom e liberdades dramáticas e nominais (Sarfraz chama-se aqui Javed) tomadas, a questão levantada tanto pelo livro como pela sua adaptação é a mesma: “consegue um homem que fez carreira a cantar sobre a vida da classe operária americana falar da de um rapaz paquistanês que quer ser escritor na Grã-Bretanha?” E é aí que Blinded by the Light se prova também capaz de ser bem-sucedido, na habilidade de explicar para uma audiência global a capacidade de Springsteen em abordar temas que despoletam uma capacidade de identificação universal, como a alienação individual (Dancing in the Dark), os conflitos intergeracionais entre pais e filhos (Independence Day) e a vontade de auto-afirmação pela conquista da liberdade existencial e independência (The Promised Land).
Certo, a realização não tem personalidade visual [o que é preferível a ter uma má personalidade, subentenda-se, um Danny Boyle armado ao pingarelho numa egocêntrica estética de videoclipe com uma câmara e montagem cinéticas ao extremo, assim como ângulos holandeses sem qualquer propósito dramático, como aconteceu há um par de meses com o lastimável Yesterday (2019)]. Certo, a caracterização das personagens está, até determinado ponto, subnutrida. Certo, há uma aura excessiva de feel-good movie, crowd pleaser, o que lhe quiserem chamar, que faz com que o filme se encontre arriscadamente preso ao zeitgeist infantil e obnoxiamente motivacional que afecta boa parte da actual cultura mainstream. Mas, por outro lado… é um filme de uma destreza inegável na forma como se serve apropriadamente do reportório musical que usa, pondo em relevo o espírito de cada canção e transferindo-o para a construção narrativa das suas cenas, mesmo que estejam em contextos muito diferentes, para comentá-las e reflecti-las (uma manifestação violentamente nacionalista ao som dos últimos minutos fatalistas de Jungleland, uma corrida pela cidade acompanhada pelo enérgico Born to Run, uma declaração de amor pela letra apaixonante de Thunder Road) numa história bonita de um rapaz que, talvez por ouvir um tipo falar tanto de “terras prometidas” e de desejos de fuga da cidade-natal, aprendeu o significado das palavras “lar” e a não renegar as suas próprias raízes. Um filme, portanto, contando acertadamente pelas canções de Springsteen e que, como tantas delas, acaba na estrada, esse local de novas possibilidades e aventuras onde amantes rejeitados se reúnem, onde pilotos de rua se redimem, e onde se acredita sempre, mas sempre encontrar qualquer coisa como a concretização de um sonho, seja ou não o americano.
Duarte Mata