A cerca de meia hora de Dolor y Gloria (Dor e Gloria, 2019), Salvador, realizador envelhecido, cheio de dores e maleitas, jaz grogue no seu elegante sofá encarnado. Está drogado. Acabou de fumar uma chinesa com Alberto, actor que protagonizou o filme que lhe deu a fama – Sabor – e de quem não sabia há muitos anos. Agora reencontrados, o primeiro desfruta de uma intermitência da dor proporcionada pelo cavalo e o segundo, desesperado por trabalho, lê um texto no computador do cineasta – A adição. Este é um texto que fala das memórias do cinema ao ar livre, ligadas às brisas das noites de Verão e à vontade que dava de fazer xixi, quando os meninos viam, no ecrã enorme, cenas com águas e cataratas como a Marilyn Monroe em Niagara (1953) ou o Warren Beatty e a Natalie Wood em Splendor in The Grass (Esplendor na Relva, 1961). Mais tarde, saberemos que a adição não é (apenas) a do cinema, mas a tóxica: a de um amante do passado que Salvador não conseguira resgatar da heroína.
No centro da dor e da glória do mais recente filme de Almodóvar, de natureza autobiográfica – diz-se o seu 8½ (Fellini 8½, 1963) – está este, tantas vezes explorado, par: cinema e droga. António Banderas, actor que esteve no centro do “sabor inicial” do cinema do realizador espanhol é aqui chamado para fazer de alter ego deste. A Salvador começam-lhe a faltar as forças para filmar e, sem cinema, corpo e mente começam a dar de si. Terá que encontrar uma droga de substituição, droga essa que uma carreira plena de filmes conseguiu manter à margem. Trajecto inverso o de Alberto (Asier Etxeandia) que precisa voltar a representar para manter a sua adição controlada. Este vai-e-vem entre a toxicidade real e a cinéfila em Dolor y Gloria, mais do que ser tomada na sua literalidade, pode ser vista como a explicitação de um método.
O que Almodóvar mostra – quiçá pela primeira vez de forma tão directa – é o seu método de trabalho. Um filme metodológico mais do que melodramático.
O método é tudo, ele faz o homem. E a razão deste ser um filme vulnerável, em que Almodóvar se apresenta, não é tanto por via directa. A de um homem com seus traumas com ex-amantes, a descoberta do desejo em criança, uma mãe pouco receptiva ao seu trabalho, etc. O que Almodóvar mostra – quiçá pela primeira vez de forma tão directa – é o seu método de trabalho. Um filme metodológico mais do que melodramático, portanto. Um meta-melodrama que vai avançando nesse doce e amargo vai-e-vem, entre o passado e o presente, como um homem em declínio que recorda, como comédia ou como drama, o que viveu. No final das contas, nunca se sabe bem qual dos dois, se a comédia ou se o drama, prevalece. Isso é o que dá a intender Salvador quase no fim, mas o espectador dos filmes do espanhol sabe bem que não é bem assim. Não é tanto uma questão de escolha, mas de cúmulo: quem assiste à vida fílmica de Almodóvar chora e ri, às vezes na mesma cena.
Quando, nos diversos flashbacks de Dolor y Gloria, Alberto recorda o seu passado, como quando na infância foi viver com os pais numa cova em Paterna, Valência, ou quando, mais tarde, cuidou da mãe antes dela morrer, surgem na mente do espectador evocações de memorabilia sentimental almodovariana, pedaços de filmes como La mala educación (Má Educação, 2004) ou Todo sobre mi madre (Tudo Sobre a Minha Mãe, 1999). Por outras palavras, praticamente toda a segunda metade da sua carreira foi feita neste registo de auto-ficção (termo que a dada altura surge, comicamente, na boca da mãe de Salvador), no qual a prescrição para a vida era encontrada na sublimação do cinema. Uma obra como um rosário feito de episódios de amor e glória, um colar de flash-memories. Especular não leva a muito, mas talvez possamos pensar no envelhecimento do realizador como o estreitamento desse longo caminho de tecelegem da vida no cinema e do cinema na vida. Por isso, Dolor y Gloria possui esse lado nu e meta-melodramático: em que cada memória é, literalmente, uma cena de filme.
Talvez seja assim escasso procurar valorizar esta sua última obra – um filme que encantou a crítica e que era um dos favoritos a vencer a Palma de Ouro em Cannes este ano – como um mero regresso de Almodóvar à sua casa, a do melodrama, depois de nos últimos anos ter-se dedicado a experimentar o thriller, ou a reabitar a comédia e o drama “sério”. Dolor y Gloria é antes um filme sobre o cinema como instrumento terapêutico da memória, um entre covas – a do passado e a do presente, num momento à Brisseau em que vemos o apartamento do próprio Almodóvar, em Madrid, como a casa-museu (mausoléu) do realizador Salvador. Um filme-súmula de quase todos os filmes de Almodóvar. Filmes que davam vidas, formado que foi o cineasta nas histórias das mães e das vizinhas.
A certa altura Salvador diz-nos: “a minha vida sem filmar não faz sentido”. O mesmo podemos dizer dos seus filmes: os seus filmes sem a vida não fazem sentido. Que siga o vai-e-vem, a movida ardente e dolorosa, é o que eu desejo.