E se os pobres fossem os parasitas dos ricos? Este subtexto do novo filme de Joon Ho Bong terá o poder e o condão de afastar muito boa gente da sala de cinema, assim como de dinamitar o olhar sobre esta obra, em virtude de uma dada leitura política. Mas, ajunte-se, e se o coreano tivesse ido filmar os brinquedinhos, os recreios das mansões luxuosas e as paranóias das classes ricas do seu país e fosse ele mesmo o parasita? A térmita que tudo procura roer por dentro, com a enzima da comédia negra, da sátira social que explode em violência e compaixão. A coisa assim complica-se e ainda bem.
Ainda a premissa. Um casal e seus dois filhos vivem numa casa minúscula, com visão gradeada abaixo do nível da rua, de onde se podem ver os bêbados a mijar e em que é preciso subir à retrete para ter wifi. Fazem biscates, dobram caixas de pizza, os filhos não estudam e o desemprego é a condição. Do outro lado, a família duplo. A viver numa casa maravilhosa, a filha a necessitar de explicações, o menino irrequieto com problemas “artísticos”, e os pais cada um com seu babysitter: a empregada e o motorista. Sem revelar mais digo apenas que Bong filmará uma certa ideia de invasão do organismo, de luta pelo território, de esventramento de um elevador social parado que é preciso enxergar no seu poço e entranhas.
Bong sugere, não sem problema, que há um odor na pobreza que, mesmo quando tudo o resto é encenado ou cirurgicamente removido, se mantém inalterado.
Os temas principais de Gisaengchung (Parasitas, 2019) não são novidade no cinema de Joon Ho Bong. Em 2006, com Gwoemul (The Host – A Criatura, 2006), já o realizador filmava, através de uma criatura nascida dos excessos da poluição e dos esgotos, uma ideia de contaminação e a relação parasita/hospedeiro. Uns anos depois, outro tema presente na Palma de Ouro de Cannes deste ano (a primeira de sempre para a Coreia), surgiria na sua obra: a alegoria para o confronto de classes sociais. Falo de Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013) [a tradução em português continua tão bonita, não é?], uma distopia assente na ideia de divisão das classes de acordo com os diferentes compartimentos de uma locomotiva. Ora, o filme de 2019 é o sumo de laranja da ideia de parasitagem, com a polpa da manga da crítica social.
Mas vale a pena procurar ainda outro sabor a adicionar à já de si gostosa polpa manga-laranja. O ano passado, ainda em Cannes, um filme do compatriota Chang-dong Lee, Beoning (Em Chamas, 2018), vencedor do prémio Fripresci, filmava, a propósito da vida de um jovem novelista, as diversas entradas no apartamento modesto da sua amiga de infância e no apartamento luxuoso do amigo desta. Em 2016, Chan-wook Park, em Ah-ga-ssi (A Criada, 2016) filmava um plano de sedução e entrada na casa de uma viúva japonesa através de uma carteirista que veria tornar-se sua criada. E que dizer do “longínquo” ano de 2004, no qual Kim Ki-duk realizou Bin-jip (Ferro 3, 2004) acerca de um jovem “fantasma” que entrava nas casas de famílias desconhecidas, enquanto estas estavam ausentes e lhes pagava a estadia em limpezas ou concertos? Estes filmes coreanos da última década parecem ter em comum uma abordagem crítica das divisões sociais no país, através das casas e, em particular, da entrada “sorrateira” como forma de auscultação de uma possível, ainda que transiente, mobilidade social.
Nesse filme de Kim Ki-duk estava já contida esta ideia de presença espectral de uma dada classe sobre a outra. Coisa que Gisaengchung torna evidente. A dona da casa rica crê que tem um fantasma em sua casa e que isso lhe traz prosperidade. Assim como o seu filho que, não conseguindo distinguir visualmente a presença de um “parasita” em sua casa, sente a sua presença através de odor particular. Bong sugere, não sem problema, isso mesmo: que há um odor na pobreza que, mesmo quando tudo o resto é encenado ou cirurgicamente removido, se mantém inalterado. Aliás, não por acaso, numa das sequências, vemos uma enorme enxurrada que inunda de lama – de esterco, é isso mesmo que vem à mente – a casa da família pobre.
Em 1993, o filósofo Jacques Derrida escreveu um livro chamado Spectres de Marx que dava conta de uma certa presença, como retorno espectral, das teorias marxistas após a queda do muro de Berlim e o declínio do comunismo. Um contexto para atestar dessa espectralidade é dada por todo o pensamento neo-marxista do qual Antonio Gramsci, filósofo e membro fundador do Partido Comunista Italiano, foi um de vários exemplos. A razão porque o nomeamos é porque este defendia que a classe trabalhadora é dominada pela classe dirigente sem que aquela tenha noção desse controlo, desse domínio. Parte da violenta utopia de Gisaengchung inverte, ainda que transitoriamente, esta mesma premissa de Gramsci. Aqui é a elite toda poderosa que nunca se apercebe da presença espectral e domínio da classe desfavorecida.
O resultado, em qualquer dos casos, em Gramsci como em Bong, parece ser o mesmo. A queda da estrutura social, a guerra sangrenta ou a espera pelo melhor momento para a mudança. Entretanto, o coreano ensaiará um pós-prólogo economicista, mas… tudo não passará de um novo e rico (novo-rico) sonho.