Haverá melhor local para nos apaixonarmos do que numa exposição de fotografia? O magnetismo da visão compele-nos a abraçar o enigma de uma imagem estática, preenchendo no imediato a incerteza dos dados concretos, históricos (o seu passado obscuro, as circunstâncias do seu surgimento), com uma percepção imaginante que reconhece não estar na posse de todo o conhecimento, mas ainda assim é capaz de conhecer a espaços e é passível de se fascinar nessa incompletude incompleta. O fascínio por uma fotografia corresponde à mesma exultação do sujeito romântico pelo seu objecto de desejo, aquilo que Kierkegaard por intermédio do Juiz Vilhelm em Ou-Ou chamou de perspectiva estética do amor. Sentencia-nos ele que “o incomensurável [é] um ingrediente absolutamente vital” nesse tipo de atracção que encara o outro como um mistério que tem de permanecer como tal. Com efeito, há qualquer coisa da natureza de um desconhecimento que conhece no amor romântico, mas se ele conhece algo (mesmo que projectando), então pode sempre vir a conhecer mais. A intensidade febril e efémera do amor segundo a perspectiva do esteta poder-se-ia explicar justamente nessa contradição poética latente que só se dissolve quando se resolve, ou seja, quando a abstracção foi sequestrada pela experiência, o mistério pelo entendimento, e o objecto amado passa a sujeito conhecido.
Estaremos a distanciar-nos de Netemo sametemo (Asako I & II, 2018), apesar de tudo a tentativa de Ryûsuke Hamaguchi entrar no circuito comercial japonês após o colossal e denso Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), com estas considerações de um estudante de filosofia nostálgico de leituras passadas? Não cremos. Convide-se o espectador a atender aos cinco minutos que abrem o filme: Asako (per)segue Baku, como que agarrada por forças invisíveis, abandonando a exposição de fotografia dedicada ao célebre photobook de Shigeo Gochô, Self and Others. Baku, o rapaz que ela viu pela primeira vez, reveste-se da soberania própria de alguém que já assumiu o papel de “absoluto eu no outro”. O seu olhar meio desligado contrapõe-se ao rosto declinante, repleto de desejo, de Asako. Uma pequena explosão imiscui-se entre os dois. Ele aproxima-se – a sombra das suas pernas invade-a, captura-a. Trocam nomes como quem entrega a identidade numa bandeja, pronta a ser consumida pelo outro. Beijam-se sem se conhecerem, ou melhor, reconhecendo que se desconhecem. Basta tão pouco para espalharmos a eternidade na mesa de jogo, e no entanto é dessa matéria que somos feitos. Quem não conseguir sorver a brutalidade desta cena, uma quase perfeita ilustração da concepção estética do amor, também terá dificuldade em fazer o raccord entre o embaraço alheio de um casal beijando-se em público, perdido no egoísmo a dois, e as próprias pulsões secretas que tão frequentemente nos fazem atraiçoar os preceitos mais limpos e ordenados da razão, derrapando na maionese vergonhosa das paixões.
Apontar a objectiva às estruturas vitais e arquetípicas: é este o conceito renovado de cliché em Hamaguchi. A isso se deve a constante estranheza que ele vai impregnando no familiar género cinematográfico enjoativo que adoptou e enche as salas de cinema no Japão, sendo ainda reconhecido por lá como o protótipo do filme de grande público. Não é que o filme romântico seja aqui desconstruído com as estratégias do desiludido que se afastou de tudo o que cheira a rosas para praguejar contra o seu mau perfume (ou outrora bom em demasia), mas é antes escalpelizado numa tentativa de explicar os cordões que movem as marionetas que todos somos quando amamos (e como amamos). Para Hamaguchi, é preciso fazer mira aos modos de se sentir afectado para rumar contra essa evidência excruciante das emoções, que tantas e tantas vezes não é posta à prova em imagens, antes reforçada por elas e com elas. Por isso, a sua tentativa tem uma quota parte de esforço intelectual; porque pensar corresponde a decompor, separar, hierarquizar e não o contrário. Portanto para ele, como aliás para Kierkegaard, não se ama de uma só maneira e, a despeito de até poder haver compaixão pela encruzilhada dos corações, nem todos os caminhos são válidos na mesma medida.
Para Hamaguchi, é preciso fazer mira aos modos de se sentir afectado para rumar contra essa evidência excruciante das emoções, que tantas e tantas vezes não é posta à prova em imagens, antes reforçada por elas e com elas.
Voltemos a Asako e Baku. Que fazer destes amantes consumidos na exterioridade do seu desejo? Numa das sequências mais marcantes (que substitui por completo a típica consumação do eros através do coito, tornando-a aqui desnecessária), os dois encontram-se estatelados no chão após terem tido um acidente de mota. A dor é substituída pelo riso, o perigo da morte une-os, a própria anulação das identidades é sensualizada. O amor estético assim o exige: a intensidade da imediatez leva ao arrebatamento. Nada de interior tem de ser protegido ou conservado porque a exteriorização do desejo é tudo o que há, o amor não se medeia nem se deixa mediar por nada sob pena de se extinguir. E, no entanto, Baku desaparecerá misteriosamente e abandonará Asako sem explicação. O fluxo passional aparentemente harmonioso e genuíno é, pois, interrompido por dentro – lembremo-nos, toda a perspectiva estética eventualmente conhecerá a efemeridade do seu projecto, roçando-se, pois, em promessas frustradas ou falsificadas de eternidade. A incompreensão acerca de Baku, o objecto do desejo, adensa-se e o fascínio tende a prolongar-se com a ausência. E Asako? Irremediavelmente deixada no pico de um amor que conheceu um término imposto e que não implodiu mutuamente por dentro (como seria esperado), permanecerá numa atracção que não destruiu a sua aura de mistério, antes a intensificou sob a forma de perda. A esta Asako poderíamos chamar de “I”, por razões que ficarão claras mais tarde. Como fica explícito no título internacional do filme, a segunda Asako, ou “II”, será aquela que se moverá no sentido contrário desse “amor que perece quando o mistério desaparece” (outra vez Kierkegaard).
A ideia do duplo percorrerá Asako I & II até ao miolo. Ela era já tácita na mais célebre fotografia de Shigeo Gôcho em Self and Others mostrada na visita inicial à exposição: duas gémeas vestidas da mesma maneira em pose, perante uma câmara que capta a soturnidade das suas expressões, apenas distinguíveis uma da outra ao nível do detalhe – as mesmas irmãs entrevistadas fora de campo no documentário homónimo de Makoto Satô, Self and Others (2001) chegaram mesmo a confessar o desconforto que aquela fotografia a preto e branco sempre lhes causou. Uma das coisas mais inquietantes na ideia do duplo é a transgressão do mito da identidade própria, única e irrepetível. Há qualquer coisa disso na fotografia de Gochô, principalmente num primeiro olhar mais desatento. Depois, o jogo minucioso da identidade na diferença (um sorriso, um formato de cara que não é exactamente o mesmo, etc.), consegue ainda assim provar que se tratam de dois seres distinguíveis, separáveis, mesmo que isso não consiga amainar o sentimento desassossegador da imagem que nos devolve a mirada. Asako (II) voltará a contemplá-la na companhia de Ryôhei, um sósia de Baku e simultaneamente o seu duplo, com quem iniciará mais tarde uma nova relação.
Da mesma maneira que o amor pode ser descrito como uma “união entre necessidade e liberdade”, então a ansiedade do duplo manifesta-se na possibilidade de escolher um de dois caminhos. Ela é, portanto, a vertigem da liberdade de poder vir a ser uma coisa ou o seu contrário num regime adversativo integralmente exclusivo.
Visto na semelhança assombrosa com o seu análogo, o duplo cria também, sem fundamento, uma hierarquia de privilégio segundo a qual tendemos a eleger um membro mais original da díade e do qual se extraem as diferenciações por comparação ao outro, a sua ilegítima cópia. Portanto, e a despeito de tudo isto ser ficção da nossa muito frágil cognição, torna-se quase impossível apagar a dicotomia “original-réplica”, bem como a diferença de qualidade subsumida nessa dualidade. Neste sentido, Ryôhei começa por ser a sombra diminuída de Baku, a sua reprodução a papel químico, se quisermos, alguém que existe para o recordar e invocar (como uma fotografia “viva”), nesse momento em que as primeiras impressões ditam o grau de afinidade de maneira quase irreversível entre os sujeitos. Quererá Hamaguchi dizer que os novos amantes uma e outra vez amontoados na vida afectiva de cada um são sempre duplos nesse sentido específico de lembrete agitador de antigas paixões? Ou que o objecto de desejo aparenta ser sempre o mesmo, dada uma certa inclinação formal e repetitiva na atracção que o mesmo carrega? Pode ser que sim, mas aceitar essas conjecturas sem a contrapartida do realismo mágico parece-nos insatisfatório. É necessário levarmos a sério a verosimilhança insólita dos sósias Baku-Ryôhei sem o olhar redutor de um alegorista. É, portanto, necessário ver cada um desses duplos na relação com as duas Asakos, I e II.
Com efeito, estes duplos duplicam: eles não são meros doppelgängers num jardim de espelhos ou gémeos pregando uma partida ilusiva aos sentidos, mas antes a manifestação de uma bifurcação profunda. Este é o segundo significado do duplo: o outro como desdobramento do si mesmo e o si mesmo desdobrando-se na possibilidade de ser outro. Baku e Ryôhei são, então, possibilidades existenciais distintas de Asako e também duas formas de amar que se excluem mutuamente. O primeiro, como vimos, representa um amor no fio da navalha aparentemente pronto para vencer qualquer pressão exterior, imediato e veloz (o acidente de mota, a fuga do jantar de carro), temporal, mas que não se deixa nunca interiorizar devidamente: não conhece compromissos, depende das pulsões, conserva o enigma, etc. O segundo, por contraste, é um tipo de afecção espiritual “adquirida na paciência” que constrói um modelo de conduta passível de ser trazido para a vida diária (veja-se como o espaço doméstico enquanto espaço de intimidade só entre Asako e Ryôhei é realmente filmado, por contraste ao quarto improvisado e “de passagem” de Baku). O amor de Ryôhei, por mais manso que possa parecer aos cépticos que não têm notícia das coisas duradouras, satisfaz o adágio matrimonial do Juiz Vilhelm: “uma pessoa só ama verdadeiramente quando sabe aquilo que ama”; ele lança, por isso mesmo, as fundações do cumprimento de uma promessa de exclusividade e eternidade baseada numa quase absoluta compreensão entre pares.
Da mesma maneira que o amor pode ser descrito como uma “união entre necessidade e liberdade”, então a ansiedade do duplo manifesta-se na possibilidade de escolher um de dois caminhos. Ela é, portanto, a vertigem da liberdade de poder vir a ser uma coisa ou o seu contrário num regime adversativo integralmente exclusivo. Asako (I) tiraniza Asako (II) com visões do original Baku na pele replicada de Ryôhei, forçando a segunda a “ouvir as entranhas” da primeira (lembram-se de Happy Hour?) até à desrealização de todos os projectos. Aqui estamos em pleno território hamaguchiano. O assombro do duplo desemboca numa decisão hesitante, porém com a forma da irremediabilidade de um pecado. O desejo, quando assim encarado nesta sede radical de escolher o que nos destrói, muda o rosto dos seus intervenientes, desregula-os trazendo à tona outros “eus”, oblitera as fundações éticas porque olvida qualquer petição de universalidade nos actos. É o olho em estado selvagem (parafraseando a famigerada frase de André Breton) do modo existencial do esteta. Mas se Asako (I) julga ter finalmente acordado enquanto foge com Baku de Ryôhei, fiando-se nas entranhas nem sempre mais esclarecidas do que a pele que as cobre, é porque ela não se apercebe ainda que apenas despertou dentro de um outro sonho. Cabe a Asako (II), no entanto, vir à tona do sono e abrir os olhos pela segunda vez.
A ideia de graus de vigilância ou hierarquia de estados oníricos assume aqui um papel fundamental, o mesmo que os graus da existência, desenhados habitualmente em círculos concêntricos, alcançavam em Kierkegaard. Asako (II) está pronta a redimir-se perante o amante destruído (por mais difícil que isso seja) porque contém já a superação de Asako (I). Dessa maneira, a procura pela retoma do amor ético de Ryôhei representa já a primeira vitória sobre a ansiedade, mas também o esclarecimento em relação ao amor estético, insuficiente, de Baku. Da forma mais inusitada, aguardando por um perdão que pode nunca chegar, é, afinal, Asako que acaba por complementar a exigência sobre-humana desse amor ético baseado no conhecimento radical do outro, nesse conhecimento que não desconhece. Aceitar a sujidade do rio, que é belo por não se esconder ou resguardar-se em sigilo, pode ser o novo início destes dois futuros amantes passados, expulsos do paraíso após terem saboreado o fruto proibido, entregues, pois, à liberdade de poderem sujeitar-se ao compromisso eterno.