Setembro, espécie de rentrée cinéfila depois do marasmo de Verão, foi um mês de várias estreias importantes. Neste artigo dedicamos novos olhares e textos a filmes que já tinham sido alvo de análise, como são os casos das defesas de Ad Astra (2019) de James Gray por Duarte Mata e Gisaengchung (Parasita, 2019) de Bong Jonn-ho por Bernardo Vaz de Castro. Também repescamos filmes que não tiveram muita atenção na altura da sua estreia, casos de Santiago, Italia (Santiago, Itália, 2018) de Nani Moretti por João Araújo e Rambo: Last Blood (2019) de Adrian Grunberg, por Ricardo Gross.
Moretti vai surgindo aos poucos neste documentário que compõe um retrato sombrio da história do golpe de estado no Chile em 1973, e também sobre as pessoas envolvidas, quer de forma directa, quer simplesmente afectadas pelas repercussões políticas do momento. Depois de aparecer logo no primeiro plano a olhar sobre a cidade chilena de Santiago, ouvimo-lo apenas muito mais tarde (como se não quisesse roubar protagonismo à história que mostra) a fazer uma pergunta, quanto antes ouvíamos apenas as respostas dos entrevistados; depois aparece ele próprio no enquadramento a reagir às palavras e emoções de um dos entrevistados. Numa terceira ocasião, quando um militar que participou na tortura aos prisioneiros políticos, diz-lhe, numa espécie de off the record, que só aceitou em conceder a entrevista porque lhe tinham dito que Moretti estaria a fazer um filme imparcial, este responde-lhe, claramente, “mas eu não sou imparcial”. É um dos “mitos” que Moretti faz questão de desmentir, a imparcialidade e impessoalidade do género documental, como se isso alguma vez fosse possível (isto é, anular-se perante um conceito de objectividade), especialmente para o italiano.
O documentário é bastante tradicional no seu formato, na maneira como combina uma série de entrevistas, em que o interveniente aparece sentado, enquadrado de frente para a câmara num ambiente doméstico, e imagens de arquivo, que acompanham as descrições, e ajudam a reavivar e reactivar a memória. Este é assim um elogio a este modelo “clássico”, por acreditar na força das palavras e dos graves acontecimentos retratados, e no peso dessas palavras ditas pelas pessoas envolvidas. Esse gesto é de louvar, e o documentário é bastante eficaz (pedagógico) na construção de uma linha temporal, expondo por exemplo o trabalho dos media em criar factos alternativos (a teoria do “suicídio” de Allende e do país à beira de uma guerra civil, a justificação da tortura), confrontando até alguns ex-militares envolvidos no golpe que ainda hoje o justificam. Porém, uma vez descrito o golpe, e o terror dos tempos que se seguiram, o filme perde-se em tangentes menos interessantes, quando acompanha uma série de intervenientes no seu refúgio na embaixada italiana e subsequente fuga para Itália, dedicando o terço final do filme aos seus caminhos pessoais, os seus sacrifícios e a sua integração num país estrangeiro (daí o título, de Santiago a Itália). É uma escolha subjacente à curiosidade de Moretti, mas que parece menos interessante – o melhor mesmo será aproveitar para complementar este documentário e (re)ver o soberbo filme de Patricio Guzmán (que surge aqui como entrevistado) sobre esse período da história chilena: La batalla de Chile (1975-1979).
João Araújo
Ao contrário do amigo walshiano Luís Mendonça, não vejo Ad Astra como “um The Lost City of Z (A Cidade Perdida de Z, 2016) in space”. Para compartilhar dessa opinião, o filme teria de ser mais elíptico e oscilante geograficamente, onde por cada 15 minutos passados no Espaço, responderiam 20 passados na Terra, e com um protagonista tão carismático e cativante como uma alpaca após a tosquia. Dito isto, Ad Astra parece-me correr bem onde The Lost City of Z vacilava, mais entusiasmante e coeso ao concentrar-se exclusivamente no decorrer da viagem aventurosa, assim como numa personagem onde a complexidade moral e a monomania se sentem mais palpáveis e credíveis, fazendo-o suficientemente interessante para acarretar o filme aos ombros e para explorar imaculadamente em primeiro plano aquele que é o grande tema da obra de James Gray: a família. Para além disso, é o filme de Gray mais sensorial e impressionista, aquele que mais se serve de vários dispositivos cinematográficos para colocar o espectador no interior da cabeça do seu protagonista, seja na forma enérgica e intensa como o cineasta recorre ao plano subjectivo e à montagem rápida (logo na vertiginosa cena inicial, onde Brad Pitt cai em queda livre após tentar arranjar um satélite na órbita terráquea), na voz-off constante, íntima e em permanente autoquestionamento (apetece dizer malickiana), contribuidora para uma certa musicalidade embalante ao filme, ou principalmente na maneira como se foca bem de perto no rosto “prostrado, envelhecido, sulcado pela dor” de Pitt, numa abundante quantidade de planos fechados e de detalhe.
Interessado menos no brilho emitido pelos astros do que aquele que percorre a tristeza mineral do olhar da sua personagem, Gray cria assim o seu épico de solidão e abandono, sendo a verdadeira viagem não a literal rumo ao espaço sidéreo, mas sim a espiritual ao interior de um homem magoado (as paisagens espaciais, com o seu vácuo, frieza e quietude, parecem por isso mais espelhar a masculinidade estóica e empedernida de Pitt do que pretender alcançar qualquer fulgor mítico e epopeico). Uma jornada edipiana de perdão, autoconhecimento e de transcendência pessoal, onde um filho enjeitado aprende a reconciliar-se com o seu passado e a deixar o pai indolente partir, cortando o cordão umbilical animicamente pesado que une um ao outro (simbolicamente alcançado pelo largar do cabo que une os dois fatos astronáuticos no clímax). Porque, como sempre em Gray, é do peso existencial do sangue que se fala. Agora, Ad Astra está longe de ser perfeito, com um final convencional, previsível e ausente das ideias de mise en scène de que Gray já se provou mais do que capaz [afinal, falamos do cineasta que acabou The Immigrant (A Emigrante, 2013) a reinventar o split screen], o reencontro pai-filho apressadamente resolvido, ou com a reminiscência de Apocalypse Now (1979) sentida ao ponto da exaustão. Mas acredita no impacto que pode conter uma lágrima tímida, um “let it go, my son” quando mais nada na banda sonora se escuta, um cinema de ritmo calmo e sensibilidade adulta que questiona, confronta, desafia o espectador a reflectir sobre si e o conjunto de experiências abarcadas pela vida humana em toda a sua angustiante complexidade. E com ele, quem sabe, levá-lo para um pouco mais perto de uma verdade que não espera. Talvez mesmo daquela que só se encontra nas estrelas.
Duarte Mata
Comecemos em modo herético, dizendo que neste filme também existe uma Debbie tirada às garras impuras dos “novos índios” (a organização criminosa mexicana que se dedica ao tráfico de raparigas para prostituição), mas que não regressará a casa em iguais condições às da personagem de Natalie Wood na obra-prima The Searchers (A Desaparecida, 1956), de John Ford. Prossigamos em modo menos herético, afirmando categoricamente que Man on Fire (Homem em Fúria, 2004), de Tony Scott e, detalhe fundamental, protagonizado por Denzel Washington, é ainda a referência inultrapassada do filme de resgate e vingança com massiva contagem de cadáveres chicanos. Adrian Grunberg, realizador de Rambo: Last Blood, integrou a equipa secundária de realização do filme de Scott, o que poderá ser mais coincidência que fixação.
Grunberg ergue um muro de sangue e de fogo, com mortos às dezenas de ambos os lados da fronteira, embora todos à excepção de um, para o mesmo lado. É um filme marcado pelo maniqueísmo, pela brutalidade da violência e por uma incorrecção política a que o espectador de hoje poderá ser mais sensível do que o seu semelhante nos anos da presidência norte-americana de Ronald Reagan (1981-1989), pródigos em cinema que fazia apelo aos instintos mais básicos, e que como tudo teve filmes melhores e piores. Esse aspecto obsoleto, de relíquia actualizada para o período Trump, transmite ao filme de Grunberg e Stallone uma couraça que exerce o seu encanto – o heroísmo feito de engenho e testosterona de um coração enegrecido – e que como o próprio John Rambo afirma, encontra na preservação da memória dos seus mortos (não confundir com aqueles que foram por si mortos) a única razão para viver.
Ricardo Gross
Numa declaração anterior à entrega do prémio o cineasta Bong Jonn-ho afirmava que este filme é “demasiado coreano” para o júri de Cannes. No entanto, tal consideração caiu por terra ao ser eleito o vencedor da mais recente palma de ouro. Talvez o júri, tal com a maioria dos admiradores de Bong Jonn-ho, considere que é precisamente o lado “demasiado coreano” que desperta um profundo interesse, ao contrário das anteriores derivações americanas. Tal como outros cineastas, o cinema de Jonn-ho parece estar enraizado a uma determinada cultura e situação socioeconómica, facto que é determinante no modo como este constrói as narrativas e inclusive dirige os seus actores. Enquanto Snowpiercer (2013) e Okja (2017), são dois exemplos que partem de uma formulação global para construir uma narrativa particular, Madeo (Mother, 2009) ou o mais recente Gisaengchung (Parasita, 2019), partem precisamente do particular para formularem uma questão global.
Sendo o caso de Madeo o mais óbvio quanto a esta diferença entre particular-global e vice-versa no período coreano e na incursão americana, não menos pertinente é incluir Gisaengchung ou mesmo Gwoemul (The Host – A Criatura, 2006) nesta formulação. Porque enquanto os filmes americanos partem de uma questão abstracta para a concretude de um comboio ou de uma criatura fantástica, os filmes coreanos partem de situações particulares, tal como o confronto entre duas famílias de condições socioeconómicas diferentes ou de uma mãe que tenta proteger um filho com problemas mentais de um crime que lhe é imputado, para pensar em abstracto a luta de classes ou o sentido da justiça. E porque motivo é que tal movimento ocorre em ambas as situações? Porque em território americano o cinema de Bong Jonn-ho é estrangeiro, enquanto na Coreia do Sul ele compreende a realidade palpável. Nem Snowpiercer, nem Okja poderiam incluir momentos como a paródia em torno da repórter noticiosa da rival Coreia do Norte ou um tão refinado detalhe na caracterização da classe burguesa coreana e as contaminações ideológicas americanas. Porque os filmes americanos são parábolas transformadas em histórias, os filmes coreanos são histórias que se transformam em parábolas. Por isso, Gisaengchung funciona antes de mais como uma denúncia particular sobre a colossal taxa de desemprego na Coreia do Sul, sobre a (sub)vida que os pobres enfrentam em caves mal arejadas em comparação às casas luxuosas que se transformam em verdadeiros bunkers, sobre um sistema de castas e uma clivagem brutal entre ricos e pobres, sobre o acesso à educação entre os ricos que dispõem de explicadores e os pobres que não conseguem ingressar no ensino universitário, sobre o acesso às tecnologias tão explícito entre o empresário no ramo da novas tecnologias e a família que procura por rede na retrete, sobre os aromas inerentes a cada classe, para que no fim possamos dele extrair qualquer moral universal. Até porque, ao contrário do grande comboio de Snowpiercer, onde os compartimentos vão além da própria metáfora, pois é a sua concretude o garante da ordem social – os pobres sustentam os ricos e fazem-nos mover – o parasitismo implica antes uma questão de desconhecimento/reconhecimento. Os burgueses em Snowpiercer que viajavam em primeira classe sabem que a sua viagem apenas é possível graças ao trabalho da terceira classe, ou seja, dos pobres, enquanto em Gisaengchung, ricos e pobres desconhecem a vida que ambos levam (a família pobre apenas toma consciência da situação da família burguesa após o acesso à casa). Talvez por isso, o desmaio da criança-burguesa não seja um momento de terror, mas antes o resultado do choque que há quando se dá o reconhecimento da existência do parasita, ou seja, quando a relação simbiótica passa do estado fantasmagórico (desconhecimento) à sua corporalização (reconhecimento).
Bernardo Vaz de Castro