A conversa foi toda sobre distâncias: a distância de uma vida ao lado de Robert Kramer, como realizador, sim, mas acima de tudo como homem e como pai. Erika Kramer é a guardiã espiritual do legado de um dos mais decisivos documentaristas americanos da segunda metade do século XX. Kramer calcorreou o mundo em busca de uma forma eminentemente política de fazer cinema e mapeou o território propriamente, atravessando paisagens (Portugal é uma delas) que foram ampliando o seu olhar enquanto cronista dos nossos tempos, dos nossos sonhos e ansiedades.
O que ressalta desta entrevista, feita durante a passagem de Erika pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito do programa do mais recente Doc’s Kingdom (festival que homenageia, no nome, um dos filmes de Robert), é a devoção desta mulher ao trabalho e à visão do seu marido, que partiu demasiado cedo em 1999, com apenas 60 anos. Entre um inesperado discurso místico e um testemunho valioso de anos de experimentação e mudança, a entrevista revelar-se-á útil para compreender um pouco melhor o escopo largo e muito desafiante da obra de Kramer. Na vida como no cinema.
Falava com um amigo que faz parte da equipa do Doc’s Kingdom e ele dizia-me – espero não o estar a citar erradamente – que a via como uma espécie de “pilar invisível” na obra de Robert Kramer.
É uma óptima imagem, muito fixe. Um pilar invisível… Talvez a “guardiã do portal”. Porque fico zangada quando as pessoas não conhecem ou são estúpidas… Eu penso mesmo que o Robert era extraordinário sob qualquer ângulo. Centenas de pessoas vieram ter comigo nos primeiros anos após a sua morte para me contarem uma qualquer história espantosa que só podia ser uma história do Robert. Não se ficando na faceta académica, o parâmetro do conteúdo destas histórias chegava a “curador” [healer]. Era espantoso. Uma mulher contou-me: “Estava num pátio e o Robert passou, tocou com a sua mão nas minhas costas e as dores que tinha há seis meses desapareceram.” Ouvi dezenas deste género de partilhas. E são histórias verdadeiras. Porque o Robert era assim: não havia ego nele, quando ele fazia este género de coisas era a um nível alto de sensibilidade e capacidade energética. Era uma coisa natural. Um amigo muito querido, que é crítico de cinema em Paris e que haveria de se tornar um amigo da família, conhece o trabalho do Robert, mas não o conheceu bem. Perguntei-lhe: “Já alguma vez estiveste com o Robert?” Ele respondeu: “Não, nunca falei muito com ele, mas um dia vi-o num grupo”. Ele ficou à distância a observar o Robert. No final do convívio, o Robert aproximou-se e disse-lhe: “Desculpa, pá, mas um dia teremos a oportunidade de estar juntos.” Entre todas aquelas pessoas, aquela pessoa fez o click. Todas estas histórias surgiram depois do falecimento do Robert. A maior parte delas, pelo menos. Eu guardo todas no meu coração.
Na qualidade de alguém que viveu com Robert e que é agora uma espectadora muito atenta do seu trabalho, perguntava-lhe em que medida os seus filmes partilham com ele esse, digamos assim, carisma espiritual.
Não conheço ninguém cujos filmes são mais extraordinários que os dele. Há outros grandes filmes… mas os temas dos filmes do Robert têm uma escala humana. Pensa na quantidade de pessoas com quem ele falou durante o caminho de Route One USA (1989). Não são amigos dele, mas todos se relacionam, todos se abrem para ele. Não tinha uma presença ameaçadora. Mas demorou muito tempo a aprender a filmar e falar ao mesmo tempo. Realizou um filme para praticar isso: X-Country (1987). Foi em Virgínia, quando uma das minhas melhores e mais antigas amigas se ia casar. Ia ser uma coisa internacional, porque ela ia casar com o líder do Partido de Esquerda de El Salvador. E iam casar-se na antiga casa do Presidente James Monroe. Havia muita gente de El Salvador e de Washington D.C. Ela era amiga de Fidel Castro, por isso, ela disse: “Espero que ele não se lembre de vir…” Nós já tínhamos dez guarda-costas na casa! Ele não veio, mas enviou uma prenda. Ela não suporta esse filme, é demasiado pessoal para ela.
Na sessão de ontem na Cinemateca Portuguesa, a Erika falou de quão generoso era Robert com quem ele filmou. Isso fez-me logo pensar no que deve ser o seu título mais exigente e duro, Notre nazi (O nosso nazi, 1984), uma entrevista a um oficial nazi durante a rodagem de um outro filme.
Estive na rodagem desse filme.
A minha pergunta é: será possível e desejável ser-se sempre generoso?
Sim, é possível. Mas havia este sujeito, Thomas Harlan, que era cineasta. Era um pouco como o Donald Trump: um homem egocêntrico, louco, despótico… Ele ligou ao Robert um dia e perguntou: “Vou rodar um filme com uma pessoa que tem um passado nas SS. Queres vir? A porta está aberta…” O Robert aproveitou, não estava no meio de nada nessa altura. Harlan filmou num sítio fora de Paris que tinham arrendado. Eu estava muito curiosa. Fui com o Robert todos os dias e segui a produção. Harlan estava ao fundo a enlouquecer. [O antigo oficial nazi] tinha uma certa atitude, porque foi preso, pagou a sua dívida à sociedade. Dizia que não tinha manchas e que não podiam falar com ele acerca do passado. Era estranho, mas está filmado, está ali. Adoro as intervenções do Robert, que vieram dele como pessoa, não como realizador. Harlan gritava à volta. Um dia queriam rodar com vários judeus idosos. Harlan gritava: “Onde estão os judeus? Vão à rua buscar judeus, que precisamos de judeus!” Eu ia lá todos os dias para assistir a esta loucura toda. Eles arranjaram estas pessoas que não faziam ideia do que estava a acontecer. Estava lá eu invisível, observando, mas não podia estar lá quando o Robert filmava. Tudo o que é bom em Notre nazi foi criado pelo Robert neste espaço maníaco.
Qual foi a opinião de Thomas Harlan em relação ao filme de Robert?
Muita merda aconteceu… Mas não sei bem. O seu filme, Wundkanal (1985), era muito mau. Ele impôs várias condições, uma delas era a de que os dois filmes tinham de ser mostrados juntos. Outro fulano apareceu durante a rodagem, fazendo o seu filme, e também roubou espaço ao filme do Robert. Foi um anormal à sua maneira. Houve todos estes problemas, mas é o filme do Robert que é bom e é reconhecido. O do Thomas desapareceu. Ele morreu e, entretanto, pudemos pô-lo a circular. É um filme certeiro.
Como é que este país, Portugal, entrou na vida de Robert?
Tenho a melhor história sobre isso. Vivíamos numa comuna. O Robert vinha e ia. Perguntavam-me: “Onde está o Robert?” Eu respondia: “Não sei, está a fazer filmes.” Ninguém queria saber onde ele estava, porque podia vir e ir. Eu mudei-me para o rancho, que foi comprado pela mulher do casamento de X-Country. Uma vida belíssima: cavalos, crianças, o oceano Pacífico, coisas boas. Estávamos juntas quando fundámos esta comuna. Algumas pessoas achavam que era um sítio de mulheres, mas não era de maneira alguma. Era para toda a gente.
Milestones (1975) tinha sido concluído e foi seleccionado para a Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes. O Robert disse: “Yeah, isso vai ser divertido”. Referimos às pessoas da comunidade que o filme foi escolhido, mas tínhamos de organizar uma reunião. Uma vizinha que viveu na China – que havia lido o Livro Vermelho e sabia os melhores ensinamentos de Mao – ficou encarregada da reunião, que durou mais de três horas. No final, determinaram que não podíamos ir, porque era um evento burguês. Ninguém sabia grande coisa sobre Cannes, sobre cinema… O Robert era o único realizador lá. Então, saímos da reunião, sabendo que íamos, mas sem saber como resolver isto de modo harmonioso com a colectividade. Três dias depois, reunimos toda a gente e ele disse: “Se formos a Cannes, poderemos passar por Portugal e espreitar a Revolução.” AHA! [Risos] Foi assim, foi assim o começo desta história de amor por Portugal. Fomos a Cannes com Phil [Philip J. Spinelli], que é o tipo que vive com o homem cego no filme Milestones. É um querido amigo. E ele esteve aqui, em Portugal.
O filme é dos dois.
Exacto. Nós chegámos ao aeroporto com Phil e já com Keja [a filha de Erika e Robert], com nove meses de idade. Vimos da janela os soldados com as armas e os cravos. Foi amor à primeira vista para ele. Era o que ele queria.
Realizou Scenes from the Class Struggle in Portugal (1977) e entrou como actor em Gestos & Fragmentos (1983) de Alberto Seixas Santos.
Isabel do Carmo e o seu marido levaram o Robert a todo o lado, ele esteve no norte e no sul.
Ele mapeou a revolução em Portugal.
Sim, era tudo o que ele adorava e ele percebia politicamente a terminologia. Mas eu não queria estar aqui, com a minha bebé. Não era a atmosfera certa, com tanques na rua… Por isso, voltei para a quinta.
Em que medida Robert encontrou aqui, em Portugal, as promessas de uma revolução ou de uma transformação que nunca chegou aos Estados Unidos? Sinto em Ice (1970) e Milestones um certo desencanto em relação à sociedade americana e uma vontade de mudar as coisas. Que tipo de mudança é que ele procurava?
Não sei se consigo responder a essa questão, porque ou é muito óbvio para mim, para ti e qualquer pessoa ou há algo muito particular. Mas não acredito que existisse algo muito particular. Ele era uma pessoa muito honesta consigo mesma e com os outros. O seu vocabulário incluía tornar as coisas melhores, passar ensinamentos. Isso era uma grande dádiva para todos nós. E um aspecto importante desta pessoa.
Ele não tinha uma agenda fixa, parece-me. Era político, mas porventura não era político no sentido partidário do termo… Isso remete-me para o modo como Robert conciliava o seu pensamento político com a sua abordagem formal ao cinema.
Nesse sentido, gosto particularmente da cena em Route One USA em que assistimos a um casal muito religioso a falar sobe as definições de “República” e “Democracia” num dicionário Webster, afirmando que ambas eram inadequadas. Estava a imaginar um jovem e rebelde Robert indo às aulas ou lendo sobre cinema documental e a sentir também que as definições oficiais são insuficientes.
Ele começou a trabalhar em “actualidades” [newsreels]. Ninguém tinha câmaras nesses tempos. Politicamente, há muita gente de direita dentro do filme – o seu génio e graça é conseguir estar em todo o lado, ninguém perde o rumo de como ele é. Ele não reage, ele actua confortavelmente em cada cena – é um dom em si mesmo.
E não é o típico realizador documental, não é? Ele estava a experimentar com as fronteiras do que um documentário “deve ser”.
Sei de duas coisas que ele disse em público durante conferências. Alguém perguntou-lhe a diferença entre curtas e longas-metragens. E ele respondeu simplesmente, perante centenas de pessoas que queriam ouvir o que ele tinha a dizer: “duração” [risos]. Podias estar o dia todo a trabalhar e saberias que esta era a melhor resposta possível.
Não sei bem o que é “documentário” para o Robert. Não creio que seja uma questão errada… Outra coisa que ele partilhou comigo sobre usar a câmara é que toda a realização é sobre estar na distância certa. Essa distância certa era um dos seus axiomas. A resposta “duração” não era uma piadola. Era a melhor resposta possível, pois eles queriam ouvir respostas intelectuais que qualquer outro realizador lhes poderia oferecer. Coisas de merda [bullshit things]. Ele não queria participar nisso.
Ele planificava muito os seus filmes?
O Robert disse-me que, basicamente, cada um dos seus filmes foi sonhado de uma ponta a outra. Sonhou-os literalmente. Ele estava sempre a tirar notas. Tinha caixas e mais caixas com cadernos. Quando acordava, tinha um caderno perto de si. E, por exemplo, no carro, se eu não estivesse para escrever, ele escrevia enquanto conduzia. Ele podia escrever meia página e depois receber financiamento por isso. As pessoas confiavam nele, naquilo que ele dizia que ia fazer.
É curioso, porque sinto que Robert usava a montagem um pouco como um caderno de notas. Sinto uma grande espontaneidade e liberdade aí, nessa etapa posterior.
Na realidade, muitos dos filmes foram “escritos” na câmara, no contacto com tudo. Eu vi-o fazer tantas coisas, mas eu sei que era muito raro quando as pessoas não o adoravam depois de trabalharem com ele.
Começámos esta conversa a falar de Robert como um curador.
Sim, um cineasta curador.
Estava a pensar no protagonista de Route One USA, esta espécie de alter ego de Robert interpretado por Paul McIsaac. Ele faz de médico nesse filme e em Doc’s Kingdom (1988).
Doc [a personagem interpretada por Paul McIsaac] é 100% criado através do meu irmão, que fala com ele no filme. Ele viveu em África durante anos, foi responsável pelo programa de saúde da Tanzânia – o Presidente pediu-lhe para fazer isso. Esteve em quase todos os países do mundo. Paul foi criado com base em fragmentos do meu irmão. Eu venho de uma família de curadores: o meu pai, o meu irmão, eu própria pratico pequenas terapias com as pessoas… O pai do Robert era médico também.
Estava a ler o artigo de Serge Daney sobre Route One USA e ele escreveu: “Porquê escolher um médico? É porque o pai de Robert Kramer é um médico (…)? (…) Porque os Estados Unidos estão doentes? Ou porque, quando estamos ‘verdadeiramente juntos’, devíamos preocupar-nos uns pelos outros?”
O Robert adorava o Serge. Quando Serge estava a morrer, o Robert tirou notas, estava espantado com ele, com como ele reagiu à doença. O ministro da Cultura pediu a Robert para fazer um filme e ele fez um filme [que não foi distribuído] que começava, em contra-corrente, na foz do rio Sena e ia subindo. Ele faz coisas fabulosas durante o caminho. Nós temos uma casa perto do rio Sena. Ele passa pela casa – está num pequeno barco de pesca a filmar – e corta para dentro da casa – claro que não foi feito ao mesmo tempo, é a magia do cinema. Dentro, está o Robert e o Serge no fim dos seus dias. O Robert acompanho-o para dentro de casa, acende a lareira e coloca um cobertor sobre Serge.
Era uma espécie de irmandade.
Era amor, respeito. Serge estava muito doente nessa altura e o Robert passou muito tempo com ele no fim. Quando és amigo do Robert, não consegues ter um melhor amigo.
O À pala de Walsh agradece o apoio prestado por toda a equipa do Doc’s Kingdom, em particular por Nuno Lisboa e João Ricardo Oliveira.