Numa peregrinação a Lourdes, pouca gente acreditará num milagre vindo dos céus que repare a situação da frágil e secretamente revoltada Christine, jovem mulher presa numa cadeira de rodas. Este filme, que lida directamente com a dúvida contra o poder da fé, é tão incomodado e incómodo como outros da cineasta austríaca Jessica Hausner, desde logo, o seu algo surpreendente Hotel (2004), obra de terror que encaminha a sua protagonista emudecida para uma viagem extra-sensorial aos corredores mais escuros de um hotel. Lourdes (2009) é sobre um milagre em que não se acredita, Hotel é sobre uma assombração que nunca nos convence em pleno – temos a sensação, a dado ponto, de nos movermos num mundo que apenas existe na cabeça da protagonista. É isso que se passa neste filme religioso-tão-pouco-religioso: o milagre que acontece é como uma provação à nossa crença não tanto de que “o milagre seja um efectivo milagre”, mas à nossa confiança quanto à boa índole – a pureza de intenções – de todas as personagens que, num centro dirigido por freiras, anseiam por uma força maior que lhes responda às preces.
O cinema de Hausner é quase sempre assim: tecido nas entrelinhas, no “não-dito”, em que progressivamente vamos sentindo na pele a malaise mental das suas protagonistas. Falei da protagonista de Hotel, mas podia falar da protagonista de Lovely Rita (2001), extremamente débil estudo sobre a iniciação sexual de uma adolescente nada lovely, ou mesmo de Amour fou (2014), obra de pálida sobriedade sobre os timings desencontrados de um amor selado pela perspectiva da morte. As circunstâncias vão guiando as personagens numa qualquer procura vagamente trasncendental. Digo “vagamente” porque, desde logo em Lourdes, o que sobressai, sempre no subcutâneo do drama, não é um ambiente de graça purificador, mas um cheiro fino a podridão, oriundo de um ambiente dominante de intriga, ciúme, vaidade e luxúria.
De onde vem este rol de espúrios sentimentos? Do facto de em Lourdes vivermos numa comunidade de homens e mulheres. Do facto, também, da protagonista Christine não acreditar, estar irremediavelmente entediada, fazendo pouco para dar resposta à sua circunstância. Talvez o que torna este o título mais conseguido de Hausner é a ideia de que se o milagre, de facto, tem um efeito terapêutico que promete resolver tudo, Christine rapidamente cai em si: é o mundo – as relações humanas e o seu jogo perverso – que padece de uma insanável invalidez. Deus deu-lhe a faculdade de andar mais uma vez – e tornar-se uma mulher desejável – mas para logo a seguir atirar o seu corpo ao chão, se não literalmente (a queda acontece, mas não comprova nada em definitivo), pelo menos metaforicamente.
Os filmes de Hausner são pequenos, têm uma estranha ligeireza e mesmo a sua angústia não declarada é suficientemente bem burilada por uma escrita fílmica sóbria.
Hausner invade com subtileza – a câmara é um bisturi que vai entrando no tecido do filme e das suas relações – o mundo destas personagens, desde logo, o “triângulo amoroso” composto por Sylvie Testud (uma das actrizes favoritas de Chantal Akerman que aqui é, na pele de Christine, toda ela rosto, silêncio, imobilidade), essa mulher consumida, na primeira metade do filme, pela passividade angustiada que olha o romance desenrolado entre a freira interpretada por Léa Seydoux e o voluntário da Ordem de Malta encarnado por Bruno Todeschini, bem como, na segunda metade do filme, pela súbita – oferenda divina, ou presente envenenado? Essa é a grande questão – posição de alguém que agora pode agir ou tem o dever de agir no sentido de fazer por merecer a oportunidade concedida – dando assim resposta, também, à comunidade de cépticos que criticam a fraca crença desta mulher; que põem em xeque a sua alegada “incompetência religiosa”.
Hausner recorre a muitos lugares-comuns do cinema moderno, é verdade. Um deles é a fraca assunção do drama, refugiando-se num discurso pouco arrojado, preso – como aquele corpo na cadeira de rodas – a silenciosas ambiguidades. Este cinema que “não dá o peito às balas” acaba por se revelar, a espaços, demasiado desafectado, clínico ou calculado. De qualquer modo, Hausner não pretende passar a perna a ninguém – fora Lovely Rita, tem pouco que ver com o diabólico mundo de títeres de um Michael Haneke ou Ulrich Seidl. Os seus filmes são pequenos, têm uma estranha ligeireza e mesmo a sua angústia não declarada é suficientemente bem burilada por uma escrita fílmica sóbria, assente em composições austeras, dramaturgia levada ao mínimo mas, ou por causa disso, sedutora q.b. É dar uma chance sem pedir demasiado.
Lourdes é um filme disponível na plataforma de VOD nacional, Filmin. Os outros filmes de Hausner citados – Lovely Rita, Hotel e Amour fou – estão também disponíveis na plafatorma.