Com o anúncio de que The Irishman (O Irlandês, 2019) o mais recente filme de Martin Scorsese, não merecerá distribuição mundial em salas de cinema (a plataforma Netflix reservou “exclusividade” de exibição, e aqui já incluímos o “falso alarme” que o Lisbon & Sintra Film Festival soou no seu site, no passado dia 14 de Outubro, após a conferência de imprensa dedicada à próxima edição do evento), evidenciou-se, súbita e inesperadamente, o estatuto paradoxal que o realizador de Taxi Driver (1976) e Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) assume nesta controvérsia e, por inerência, no próprio debate em torno dos paradigmas que as tecnologias digitais trouxeram para a produção e difusão cinematográficas.
Esse contraditório revela-se ainda mais saliente se recordarmos um conjunto de intenções pelo qual Martin Scorsese tanto tem lutado. Figura preponente na chamada de atenção para o estado crítico e respectiva necessidade de conservação da Sétima Arte, Scorsese fundou, em 1990, a Film Foundation (organização sem fins lucrativos, empenhada na preservação e exibição de cinema clássico), tendo, década e meia depois, lançado o World Cinema Project, o qual, em moldes semelhantes, procede ao restauro de títulos fundamentais do cinema mundial.
Estas preocupações não só fomentaram alguma da sua filmografia – é exemplo disto Hugo (A Invenção de Hugo, 2011), onde as origens do cinema, George Méliès e preservação cinematográfica são elementos fulcrais do seu argumento –, como têm sido o cerne de muitas das intervenções públicas de Martin Scorsese desde a década de 90. A sua paixão por projectos de conservação e reabilitação de matrizes fílmicas acha-se efectivamente pormenorizada, e por extenso:
Para quê preservar filmes quando existem coisas mais importantes e urgentes onde gastar dinheiro? A resposta é muito simples. O cinema dá-nos algo de precioso: um registo, documentado e interpretado, da nossa existência ao longo dos tempos. A necessidade de incorporar tempo e movimento nas representações de nós próprios é tão antigo como a Humanidade — podemos observá-lo nas pinturas das cavernas em Lascaux. E, fundamentalmente, essa é a essência de qualquer forma de arte. O cinema fornece-nos uma forma de lidarmos com o mistério de quem e o que somos.
Martin Scorsese, “Film Preservation: A Dire Need”, publicado no site oficial da Encyclopedia Britannica https://www.britannica.com/topic/Film-Preservation-A-Dire-Need-2119175
Do mesmo modo, e a partir do momento em que o digital começou a sobrepor-se ao analógico, Scorsese demonstrou estar atento às mudanças que se adivinhavam e sem pejo de alertar a “comunidade” para as suas consequências:
Mas não acho que esteja a ser pessimista quando digo que a arte e o negócio do cinema encontram-se numa encruzilhada. O entretenimento audiovisual e aquilo que conhecemos como cinema – imagens em movimento concebidas por indivíduos – parecem caminhar em direcções opostas. No futuro, é provável que vejamos cada vez menos o que reconhecemos enquanto cinema nas salas dos multiplexes e cada vez mais em pequenas salas, online e, suponho, em lugares e circunstâncias que nem conseguiremos prever.
Martin Scorsese, “A Letter to my Daughter”, L’Espresso, 02 de Janeiro de 2014 – http://espresso.repubblica.it/visioni/2014/01/02/news/martin-scorsese-a-letter-to-my-daughter-1.147512?refresh_ce
A ligação emocional de Martin Scorsese com a salvaguarda do cinema e da experiência do filme em sala sempre me pareceu inabalável. Aliás, durante vários anos, nutri mesmo a convicção de que o cineasta dificilmente se desviaria do que poderia ser descrito como um “activismo” em prol da conservação dos suportes, rotinas e modelos que estabeleceram a Sétima Arte tal como a vivenciamos durante o Século XX. Uma afeição, certamente, sediada nas suas próprias memórias de infância:
Portanto, o ritual de ir ao cinema com o meu pai – não importava qual o filme em exibição – tornou-se importante para mim. (…) Entrávamos sempre a meio de um filme. Havia ali também uma sensação de paz; havia mesmo. Tinha-se fé quando íamos à igreja. E tinha-se fé quando íamos ao cinema, também. Alguns filmes tocavam-te mais do que outros, mas tinha-se sempre fé. Eras levado num passeio, eras levado numa viagem. Os posters à entrada vendiam-te sonhos, sabias? E entramos na sala, e o sonho é quase real. Então, se estás a partilhar estas emoções fortes com o teu pai, com quem não costumavas conversar muito, aquela tornou-se na principal linha de comunicação entre nós.
Richard Schickel, Conversations with Scorsese, Alfred A. Knopf, 2011.
Perante isto, como reagir aos vários “comportamentos desviantes” de Martin Scorsese em relação à experiência, primordial e analógica, do cinema em sala? Se a decisão de filmar A Invenção de Hugo ou The Wolf of Wall Street (O Lobo de Wall Street, 2013) em formato digital já podiam ser encarados como um princípio do abandono dos ideais que formaram uma persona, humana e cinematográfica, sem paralelo nos últimos quarenta anos, então a (declarada) impossibilidade de observarmos The Irishman – um filme rodado, saliente-se a ironia, em película de 35mm e com o aspect ratio 1.85:1 (widescreen) – em grande ecrã, poderá assumir-se como a derradeira estocada nos “sonhos de criança” que o próprio Scorsese confessou sentir de cada vez que entrava numa sala de cinema.
Perde o Cinema, perde a Cinefilia.