Quem diria… quem diria que de Banana Motherfucker (2011) surgiriam dois realizadores tão diferentes e tão inteligentemente lúdicos: Pedro Florêncio e Fernando Alle. Sobre o minimalismo observacional de Florêncio já teci as minhas loas aqui (e o Luís Mendonça aqui). Já Alle prosseguiu o caminho que se anunciava, realizando a primeira produção Troma filmada em Portugal. Só que de expectável tem muito pouco.
Em Mutant Blast (2018) a aproximação ao género da ficção-científica pós-apocalíptica de terror cómico (com mutações e z**bies) não é um ponto de chegada. Não assistimos a um “fazer à moda de”, isto não é um sci-fi “à portuguesa” (com amêijoas). O cinema de género é aqui ponto de partida.
A estrutura é-nos apresentada muito rapidamente, in media res, completamente a despachar, resolvendo as várias necessidades narrativas em pouco mais de dez minutos. O filme começa realmente quando se liberta, paulatinamente, de toda essa estrutura formatada do modelo Troma Entertainment e começa a divertir-se (reduzindo os lugares-comuns a gags humorísticos quando não os consegue evitar). Revela-se, afinal, como um verdadeiro objecto de entretenimento desempoeirado e lúdico (auto-irónico sem ser auto-complacente). No fundo, Mutant Blast só começa quando pára, isto é, quando depois do turbilhão de acção com que se inicia despacha “acidentalmente” o seu elemento mais icónico (e com ele as poucas regras que se tinha imposto), caindo num abismo sem fundo e inaugurando um “vale tudo” que é um caos em potência. A graça e a inteligência do filme prende-se no modo como todo esse mundo de possibilidades se impõem muito lentamente, segurando as cartas na mão tanto quanto possível. Aproximando-se com calma zen do desbarato, o filme vai da frustrada violação do protagonista por dois sem-abrigo gay para um rato-mão assassino, terminando com uma trupe mutante mutilada por uma ratazana raivosa e uma batalha entre uma lagosta que fala francês e um golfinho samurai. É aqui que se encontra a ousadia de Fernando Alle: usar o formato (e o formatado) de um género cinematográfico para o expandir, divertindo-se (e divertindo-nos) num jogo em que as regras foram deitadas para o monte de lixo radioactivo.
E, no entanto, (co)move-me. Há um fundo no drama dos personagens, por mais látex e papier-mâché que se lhes aplique na fronha. Há momentos verdadeiramente tocantes, como a pietà de um homem multi-braços que segura no seu regaço uma lagosta gigante que falece à beira mar. E isso é surpreendente (e bonito): como conseguir, na máxima disrupção, agarrar o nervo do sentimento (e do humanismo ambientalista)?
Mutant Blast sabe o que é (um objecto de terror trash irónico), sabe da sua infantilidade burlesca, e não quer saber.
Existe um pormenor que me parece esclarecedor desta situação. Logo na abertura, o protagonista masculino acorda de uma noite de farra e descobre, defronte do espelho, que alguém lhe desenhou um bigode no sobre-lábio e um pénis no queixo. Só que por diversas condicionantes demora mais de meia hora de filme até limpar esses rabiscos, percorrendo uma série de sequências com uma pila na cara, sabendo disso, e não querendo saber. De certo modo Mutant Blast é um pouco como ele, sabe o que é (um objecto de terror trash irónico – semelhante a uma pilinha e dois tomatinhos desenhados caricaturalmente no rosto de um amigo embriagado), sabe da sua infantilidade burlesca, e não quer saber. Ou como se percebe num dos diálogos do filme, a heroína diz-lhe “sabes que tens um caralho na cara?” e ele responde, “Isto não é um caralho, é um pénis. Um caralho é uma coisa grande, mal-cheirosa, cheia de veias e pêlos. E isto é um desenho, uma coisa fofinha.” Tal como o filme, que sabe que trabalha ao nível da vulgaridade, mas que o faz com uma certa candura brincalhona, entre amigos.
Não é por acaso, então, que nos créditos finais se lê “a film by” ao que se segue uma lista de nomes que inclui o do realizador juntamente com o de várias outras outras pessoas que participaram na feitura do filme, dos actores ao vários técnicos. Um filme de amigos como o cinema português vem fazendo amiúde, noutros estilos, é certo, vide A Espada e a Rosa (2010) de João Nicolau ou Correspondências (2016) de Rita Azevedo Gomes (para não ir mais longe). E como todos os filmes de amigos, é necessariamente um filme sobre a fraternidade. Daí que o diálogo que se segue ao beijo não-romântico que liga os dois protagonistas, perto do final, explique, “isto não é um beijo à Han Solo e Leia, é um beijo à Luke e Leia.” Um beijo de irmãos.