A ideia de valorizar Il traditore (O Traidor, 2019) com base na certidão de nascimento do seu realizador deve ser abandonada logo à primeira frase. Marco Bellocchio [autor de Marcia trionfale (Marcha Triunfal, 1976), Buongiorno, notte (Bom Dia, Noite, 2003), Vincere (2009), entre outros] percorre território histórico e cinematográfico que é património pessoal e da humanidade, mas não existe no filme o propósito de se colar ou se demarcar de quaisquer referências: sejam elas “os padrinhos”, de Francis Ford Coppola, o Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) de Scorsese, ou o Il Divo (2008) de Paolo Sorrentino. O possível efeito de déjá vu que pode manifestar-se ao longo do visionamento de Il traditore, também não merece mais do que esta frase. É uma questão temática, não cinematográfica. Il traditore é para ser tomado por aquilo que é, um filme de Marco Bellocchio de corpo inteiro, com um pujante sentido de dramaturgia e encenação que plasma a alma siciliana na sua natureza mais atávica e extrema. Isso é o contexto do filme; o seu sujeito é Tommaso Buscetta (cognominado Don Masino) um elemento da Cosa Nostra que colaborou com as autoridades italianas na década de 1980, num processo que conduziu à prisão de dezenas de elementos da máfia e à extradição de Buscetta, mulher e filhos para os Estados Unidos.
Sentimento e violência são afinal as duas faces de Il Traditore e é com mestria que o realizador italiano joga com esta moeda.
O filme de Bellocchio segue os factos à risca mas nunca se decide entre o homem e o mito, e aqui reside o seu principal trunfo cinematográfico. O lado sentimental de Buscetta, o respeito mútuo que existe entre ele e o juiz Giovanni Falcone que recolhe o depoimento, o seu maior apetite por mulheres do que pelo poder, a sua deontologia de mafioso que impedia que tudo valesse quando se tratava de eliminar um clã rival, e um particular gosto por boleros, pelo Historia de un Amor, do panamiano Carlos Eleta Almaran, que o vemos cantar no filme e que antecede os créditos finais em imagens de arquivo que mostram o verdadeiro Tommaso Buscetta. Bellocchio já tirara partido superlativo desta mesma canção no filme numa sequência de tortura levada a cabo pelos militares brasileiros, que fica como um dos momentos cinematográficos de 2019. Sentimento e violência são afinal as duas faces de Il Traditore e é com mestria que o realizador italiano joga com esta moeda.
Il traditore é uma co-produção italiana, francesa, alemã e brasileira que não desbarata a alma do projecto à múltipla identidade dos dinheiros envolvidos. O filme pode parecer mais genuíno nas cenas italianas (que preenchem grande parte das quase 2h30 de duração), mas nunca compromete o interesse do todo quando se desloca para o Brasil ou para os Estados Unidos. Outro aspecto que dá nota da capacidade de Bellocchio (também autor do argumento, com Valia Santella, Ludovica Rampoldi, Francesco Piccolo e Francesco La Licata) de contar uma história que envolve vários anos e muitos protagonistas, sem se vergar a uma apresentação canónica dos mesmos, e a uma exposição convencional do contexto político e criminal da Itália daquele período, é que mesmo quando nos podemos sentir perdidos no grau de parentesco ou nas implicações decorrentes das guerras familiares pelo negócio da heroína, a peça ou as peças que faltavam vêm ao nosso encontro, no que reforça a relação do espectador com o filme, e permite que Bellocchio especule ainda com alguns “e se?” que apresentam versões alternativas de alguns episódios.
É interessante também e enriquecedor dos sentidos do filme, ligando a muita violência desta história com uma animalidade metafórica dos seus intervenientes, que na montagem sejam utilizadas imagens de animais selvagens, na natureza ou em cativeiro, e de qualidade assumidamente inferior ao resto, bem como a opção por encenar as cenas de tribunal a meio caminho entre o que poderiam ser cenas de palco e o registo realista dominante. Tudo isto contribui para a vitalidade de Il traditore e para que a nossa resposta ao filme seja racional mas também física. Existe a história de um país, as razões de um homem, a estrutura de uma organização, por onde Marco Bellocchio nos conduz, mas o realizador também pretende colocar-nos dentro da acção e fazer daquele passado um intenso presente.