De um plano completamente desfocado, emerge a extraordinária cara de Terence Stamp, dir-se-ia a verdadeira protagonista de The Limey (O Falcão Inglês, 1999) de Steven Soderbergh. Esculpida por mil e uma agruras e outros tantos arrependimentos, não precisa de palavras para falar, de uma assentada, do desejo furioso de vingança pela morte da filha e da culpa de a ter abandonado.
A quietude a transbordar de violência, os dentes arreganhados depois de esta explodir, o linguajar incompreensível para os demais, a singular maneira de andar – da mesma forma que Howard Hawks deixava a câmara correr para se ver o balanço de ancas de John Wayne, Soderbergh repete por mais de uma vez o plano de Stamp a caminhar ao longo de uma parede de tijolo em slow motion – completam o corpo do actor, que serve de âncora ao filme (quando este se aventura por atalhos e desvios).
O enredo escorreito e ao osso, ao jeito de um série B de outrora, gizado pelo argumentista Lem Dobbs (que nunca escondeu o descontentamento com o resultado), é reduzido a menos do que a sua essência, a um espectro de uma narrativa. A Soderbergh, interessam sobretudo os temas da memória e (da passagem) do tempo.
Stamp e o cabelo comprido e pele bronzeada de Peter Fonda são usados como símbolos da contra-cultura dos anos 60 e do cinema da década de 70 do século passado. Nessa medida, o realizador convoca ainda Barry Newman de Vanishing Point (Corrida Contra o Destino, 1971) e Joe Dalessandro, superstar das produções de Andy Warhol. A homenagem/evocação ao/do cinema de outros tempos continua nos flashbacks – Soderbergh cita explicitamente, em tons sépia, Poor Cow (1967) de Ken Loach, no qual Terence Stamp participara trinta anos antes. E na banda sonora, que inclui canções dos The Who e de Donovan e composições minimalistas de Cliff Martinez a lembrar as que David Shire fez para Alan J. Pakula e Francis Ford Coppola.
Não se trata de mero exercício nostálgico, a exemplo dos que proliferam hoje em dia na televisão e no cinema. Steven Soderbergh não procura emular os filmes dos anos 70 nos seus aspectos superficiais e imediatamente reconhecíveis. Aspira, antes, alcançar o lado inovador e experimental desse cinema.
The Limey surge na filmografia de Steven Soderbergh como ponto de equilíbrio entre técnica e pensamento, forma e conteúdo, experimentação e convenção.
O desejo reflecte-se principalmente na montagem de The Limey. Jogando com a imagem e com o som (amiúde desfasados), o realizador e a montadora Sarah Flack distorcem a própria noção de tempo. Cenas de diálogos repetem-se/prosseguem em cenários diferentes, saltam para a frente, revertem à casa de partida, aparentes redundâncias que desabrocham em novos e ricos sentidos. Uma fala de uma personagem sobrepõe-se a um plano em que não abre a boca. O flashforward é tão corriqueiro como o flashback, desorientando o espectador que, às tantas, nem sabe o que (ou quando) está a acontecer. O belíssimo plano recorrente de Stamp no avião, o sol a bater-lhe no rosto, enquanto o sorriso beatífico se transforma em esgar de remorso, é prova disso. Só no final se percebe como encaixa cronologicamente na narrativa do filme.
Em menor escala, Soderbergh já havia ensaiado este tipo de montagem no anterior e mais conhecido Out of Sight (Romance Perigoso, 1998), espécie de ressurreição do cineasta aos olhos da crítica e do público, depois de uma década em que esteve meio esquecido, a seguir ao retumbante sucesso de sex, lies, and videotape (Sexo, Mentiras e Vídeo, 1989). De resto, sempre ostentou a veia experimental, intercalando obras mais convencionais com outras mais exploratórias e mantendo-se a par das novidades técnicas. Foi dos primeiros a adoptar câmaras digitais (quando a qualidade da imagem era esplendorosamente “feia”); recentemente, rodou filmes com iPhone [o subvalorizado Unsane (2018) e High Flying Bird (2019), feito para a Netflix]; e realizou Mosaic (2017), a primeira série produzida como app de telemóvel, em que se pode escolher a personagem e o fio narrativo a seguir.
Escrito isto, o seu cinema não se restringe à demanda pela inovação, por novos dispositivos, à experimentação pela experimentação. Filme com câmara ou com telemóvel, Soderbergh é dos poucos realizadores contemporâneos a pensar a découpage e a montagem, não se limitando a registar actores a falar em planos separados. A fotografia de Edward Lachman (câmara à mão, luz natural) pode parecer casual, quase de documentário, mas a montagem de The Limey nunca poderia ser como é se não tivesse sido elaborada antes das filmagens.
Como o igualmente soberbo Haywire (Uma Traição Fatal, 2011), The Limey surge na filmografia de Steven Soderbergh como ponto de equilíbrio entre técnica e pensamento, forma e conteúdo, experimentação e convenção. E é dos seus momentos altos.