Devemos começar pela pergunta sacramental: o que é ao certo – e o que acrescenta – Varda par Agnès (Varda por Agnès, 2019)? A resposta não é fácil e é na dificuldade de concretizar o habitual “engavetamento fílmico” que encontramos as maiores forças desta proposta. Certamente não é um documentário, nem um auto-retrato em sentido estrito. Varda foi uma das mais brilhantes artífices no campo do cinema de estilo documental, por vezes entrosando a ficção com acontecimentos espontâneos, não encenados, envolvendo pessoas de todos os dias. E, sensivelmente desde Les glaneurs et la glaneuse (Os Respigadores e a Respigadora, 2000), Varda é a mais brilhante exegeta do seu próprio cinema e uma muito criativa exploradora da sua memória sentimental. Também não me parece justo reduzir este filme, que de raiz foi concebido como uma série em dois episódios realizada para televisão, a uma reunião de conferências ao estilo das célebres TED Talks, em que Varda fala sobre Agnès ou Agnès sobre Varda. Em certa medida, o modelo expositivo é este – Varda fala sobre si mesma a partir de um palco, dirigindo-se a uma plateia física e outra potencialmente infinita enquanto espectadora do filme/série. Contudo, a urdidura é outra: flui como um rio, entre imagens desse palco e os planos do cinema, num curso muito livre, airoso e imaginativo, sem um programa muito definido e, ainda mais valioso, com incursões surpreendentes num percurso de vida globalmente fulgurante.
Viajamos, portanto, no cinema de Varda por Agnès ou vice-versa. De uma ponta à outra, Varda par Agnès é um filme sobre todas as mutações, transformações ou, palavra preferida da autora, reciclagens por que passou um corpus artístico de largos horizontes que tem na praia a principal “paisagem mental” e no espelho o mais recorrente objecto-fetiche. A praia é o contrário do muro e o espelho permite inscrever na paisagem o “eu e o outro”. De um lado, a irrequietude vibrante e enérgica de uma artista total; do outro, a procura de pendor humanista do eu no outro, podendo este ser um perfeito estranho ou homens e mulheres de todos os dias ou, então, os vizinhos da Rua Daguerre onde Varda foi muito feliz, nomeadamente vivendo na companhia do seu amado marido, Jacques Demy. Varda é generosa com a vida, abre-se àquilo que esta lhe oferece, no que é predeterminado, mas também no que suscita de modo imprevisto e intempestivo.
“O acaso é positivo, sempre”, disse numa masterclass recente, parecida às que se compilam neste derradeiro filme. Varda par Agnès é como um novo e salutar pretexto para a revisita da vida e obra de Varda por ela mesma. Aos 80 anos, conta Varda, sentiu necessidade de se olhar ao espelho. Daí resultou Les plages d’Agnès (As Praias de Agnès, 2008). Aos 90 anos, o seu derradeiro sopro apareceu sob a forma de uma gentil sucessão de apresentações públicas de aspectos da sua obra, organizadas de modo não forçosamente cronológico. Varda flana na sua própria vida, convocando amigos e pequenas grandes estórias, privilegiando excertos da sua filmografia que – alguns deles pouco vistos e explorados – evidenciam uma maneira de ver o mundo simultaneamente criativa, airosa e heterodoxa.
O sentido de humor desta nonagenária que nunca parou é contagiante desde o primeiro minuto.
Comparando com Les plages d’Agnès, talvez seja este o elemento mais interessante nesta série de “encontros”: o de a autora não ter pejo de incidir em zonas menos conhecidas e reconhecidas do seu trajecto. Por exemplo, Varda demora-se mais do que seria expectável naquele que foi ao mesmo tempo o seu filme mais ambicioso e o seu maior flop de crítica e comercial. Falo de Les cent et une nuits de Simon Cinéma (1995), rêverie de homenagem ao próprio cinema que contou com um elenco luxuosíssimo: Michelle Piccoli, Marcello Mastroianni, Jean-Paul Belmondo, Alain Delon, Anouk Aimée, Fanny Ardant, Sandrine Bonnaire, Catherine Deneuve e ainda Robert De Niro. Ao mesmo tempo, o trabalho fotográfico dos primeiros anos – uma muito jovem Varda foi fotógrafa, nomeadamente ao serviço do Théâtre National Populaire – ganha uma preponderância grande na segunda metade de Varda par Agnès, sugerindo que, no final da sua vida, Varda reinventa-se, isto é, recicla-se num espaço de fronteira entre a imobilidade fotográfica e o movimento nascente do vídeo e do digital.
O sentido de humor desta nonagenária que nunca parou é contagiante desde o primeiro minuto – a ligeireza da sua presença permite que o filme, visto assim, na sua longa duração para cinema, sem interrupções, não resulte demasiado pesado. Na praia do seu cinema nunca nos refastelamos demasiado no areal, porque a água morna convida a mergulhos sucessivos, preferencialmente munidos de braçadeiras coloridas. Muito coloridas, como estas memórias.