A cortina é pesada, o veludo é azul, dramático, organicamente sedutor – aí está Blue Velvet (Veludo Azul, 1986), de David Lynch, a ver-se como um filme-matéria, com muito corpo e muito inconsciente. A ferro e fogo, ardor e mistério, Blue Velvet marcou à época e sobrevive-lhe, podendo voltar-se a ele sempre, qual canto de sereia ou encanto de serpentes, que deixou um rasto no imaginário.
Esta é uma história com essência noir (neo ou pós-noir), clássica no sentido narrativo da trama que conduz a um mistério que o herói procura resolver, descobrindo coisas que não devia (arrastado numa onda de desejo e prazer que o ultrapassa); e moderna, ou pós-moderna, pelos sobressaltos e desvios, expressos na linha narrativa e no seu alto formalismo (por sinuosos caminhos visuais que descem a outras camadas, que marcam e organizam as dualidades que fazem emergir).
A cortina permite a passagem e lá entramos nós, no filme que canta Blue Velvet, de Bobby Vinton, que é uma “canção e uma textura’’ (dirá Lynch), numa cadência melancólica que estabelece um tom romântico – bem “acolchoado” e projectivo. E se a canção emerge e anda pelo filme repetidas vezes é porque faz parte de um conjunto de fragmentos que nasceram na cabeça do cineasta. Há a canção e há o resto. E o resto são as ideias, como “iscos’’ (para Lynch, “desejos’’ e obsessões, a pôr em prática): lábios vermelhos, relvados verdes, um mistério, uma vila tranquila, um homem a penetrar na casa de uma mulher à noite e a vontade de a espiar e, por fim, também uma orelha que permite “entrar num outro mundo”, porque a orelha é um orifício que tem uma franca proximidade com o cérebro e desencadeia coisas do espírito (mais ou menos assim pensou Lynch).
Cada peça, como fragmento, teve tal força que encaixou no puzzle que Lynch compôs, com o valor de coisa partida que o filme destaca – pedaços de um mundo quebrado por uma força que puxa a superfície das coisas para baixo. A espiral será descendente.
No entanto, Blue Velvet abre lindamente colorido e organizado, nada quebrado, numa pequena cidade americana modelar, onde flores, passadeiras, crianças a atravessá-las, cancelas e bombeiros que nos acenam, estruturam um ambiente protegido – compassado musicalmente pelo embalante Blue Velvet. Apesar da realidade encantada deste início, parece logo sinalizar-se um espaço de estranheza que se vê no movimento do plano, em slow motion, dando-lhe um tom de irrealidade: as aparências iludem, então. Um começo de mestre, já incrivelmente pejado de sinais que Lynch tanto gosta de multiplicar para marcar a presença das coisas que têm todas um valor; como pistas que se ligam ao todo.
O espaço é rei e torna-se montra de um cenário narrativo por onde romperá este conto noir, sedutor e violento. Muito rapidamente no início há um acidente, colado à pacatez do cenário desta pequena american way of life suburbana (alinhada nas casinhas de bairro, num homem a regar o jardim, sendo que esse mesmo homem terá um ataque cardíaco). A câmara vai logo colocar-se na sua sinuosa posição, e mostrar os indícios que compõem o quadro e corroboram a situação antes do ataque cardíaco: a torneira, a mangueira a enrolar-se, a criança, o cão. A mesma câmara vai depois arrastar-nos para a terra, para os bichos… Lynch mostra a face do filme que vira do avesso as coisas e penetra nas mais densas profundidades (literalmente). Multiplicam-se sinais, como a cave da casa familiar (Jeffrey desce as escadas, no escuro), onde a Mãe e a Tia vêem filmes de suspense e armas aparecem no ecrã da TV.
Na altura já tínhamos como ponto de referência a densidade deste mundo lynchiano, em Eraserhead (No Céu Tudo é Perfeito, 1977) e para trás já estavam as curtas-metragens de um quadro escolar revelador [e para a frente o perturbador filme encomenda Elephant Man (O Homem Elefante, 1981) e o fracasso de outra encomenda de ficção científica, Dune (Duna, 1984)].
A posição que Blue Velvet ocupa na filmografia de Lynch é importante, porque marca a vontade férrea do realizador em fazer filmes menos dependentes da produção, e mais da sua lavra. Blue Velvet nasce, assim, num contexto de vontade e autonomia do realizador com um argumento seu e a contar com grandes actores que concordaram em reduzir o seu caché (e o realizador também), para que o filme pudesse acontecer. Nesta linha, há belos encontros como o que aconteceu com Isabella Rossellini: de facto o papel não lhe lhe estava reservado, estava pensado para Helen Mirren, mas Isabella, novata actriz à época, ficou com ele e colou a figura da personagem Dorothy Vallens à sua pele.
Destaca-se também o encontro com o compositor Angelo Badalamenti que passará a trabalhar nos filmes seguintes de Lynch. Quanto a Kyle MacLachlan, já tinha entrado no universo do realizador e estava a prever-se que viria a ser o seu alter ego; Laura Dern, por sua vez, estava já definida para o papel. A Dennis Hopper foi-lhe dado um voto de confiança, vista a sua fragilidade na época, causada pelas drogas (saído de uma cura de desintoxicação). O papel reservado para ele era o de um violento toxicodependente, Frank Booth, podendo, assim, moldar-se-lhe perigosamente. Foi numa particular conjuntura que se juntaram actores incríveis, perfeitamente encaixados à medida de um filme inesperado e estranho que iria fazer história.
Blue Velvet constrói-se entre a superfície e a profundidade, entre a limpidez e a sujidade, entre a luz e a sombra – aqui está a sua face mais noir, mais expressionista, mais dicotómica.
Blue Velvet tornou-se um filme de culto, singular e extravagante, perverso e ousado, a captar dimensões do mundo entre realidade aparente e realidade subterrânea, criando os paradoxos tão caros a Lynch. Mantendo-se numa base mais ou menos estruturada e explícita, o filme carrega uma bela carga implícita que se pode ler nos comportamentos, nos décors, num ondear narrativo e estético expressivamente implicado, carregadinho de sintomas, mas repleto de belos desvios.
Sandy (Laura Dern), a amiga especial de Jeffrey Beamount (Kyle MacLachlan), aparece pela primeira vez como uma jovem curiosa e inocente a entrar no plano pelo escuro da noite, com a sua voz a surgir antes de a vermos, mais a música de fundo a envolver o ambiente, desenvolvendo sensações e criando uma curiosa atmosfera – é o toque plástico e sintomático do cineasta a manifestar-se. A criação de atmosfera é outra alta nota lynchiana que deixa antever as cargas, reais ou imaginárias, que se projectam na obscuridade, em contraste com a claridade. Blue Velvet constrói-se entre a superfície e a profundidade, entre a limpidez e a sujidade, entre a luz e a sombra – aqui está a sua face mais noir, mais expressionista, mais dicotómica. Nestas dualidades, as coisas existem em relação e não isoladas, às vezes até em fusão, daí a fuga do maniqueísmo e a ideia de contaminação, de sobreposição.
Jeffrey vai visitar os abismos, fruto do acaso do encontro num terreno baldio com uma orelha humana, cortada. Jeffrey está primeiro numa posição de inocência, mas vai entrar facilmente para o “outro lado’’, porque a vontade de descobrir o mistério que ronda este achado é superior a tudo. E ficará ainda mais aliciado quando encontra a bela cantora Dorothy Vallens.
O filme desenvolve-se a partir dos mistérios deste encontro: na pulsão dele, na projecção e desespero dela (a pulsão já lhe está na pele, já se tornou vício, ela pertence ao “outro mundo”). A força da obscuridade arrasta Jeffrey na sua caminhada – é o seu baptismo negro de fogo. E há a personagem de Frank Booth, o perverso criminoso que manipula Dorothy, “a Mommy”, e que também a ama, em louca paixão, de amor convulsivo, sado-maso, alimentado por um sentimento ferozmente romântico – “o Pappy” é encarnado na perfeição no corpo possuído de Dennis Hopper.
No Slow Club, ouvimos Dorothy cantar Blue Velvet e aí sente-se a atracção de Jeffrey e a louca paixão de Frank (que segura, dramaticamente, o seu fetichista pedaço de veludo azul do vestido da cantora) e o olhar constrangido de Sandy – notamos o falso raccord onde se percebe que é diferente o vestido de Dorothy, um problema de produção não corrigido.
Blue Velvet equilibra-se num mundo instável, o filme espreita pelas cortinas, quer dizer pelos armários e abre-se ao dark side, sem tréguas. O mote da violência já foi inscrito, com dor e prazer, com rituais sadomasoquistas, e o casal Dorothy-Jeffrey testa os limites que de Dorothy-Frank são já mestres. O jogo da manipulação serve para ir mais longe na dominação: a cantora entrega-se a Frank como arma de resistência, o corpo amolece a dor com mais dor, e juntam-se dois desesperados; o filho raptado e o marido desaparecido de Dorothy servem de chantagem à submissão. A cantora não tem saída e o jovem aparece, à imagem de um conto clássico, como o herói que tem de lutar com o monstro para a salvar. O monstro está em Frank, soberbo antagonista que se move na zona mais obscura da violência sexual, e nas intrigas de corrupção da polícia, tráfico e morte.
Num momento-chave, Frank mostra ainda mais a sua face negra, a possessão por Dorothy, quando descobre Jeffrey a sair de casa dela e não gosta mesmo nada. Leva-o num passeio de carro. Fazem uma paragem em casa de Ben, outra peça preciosa deste submundo (e no gráfico do filme), personagem representado pelo incrível Dean Stockwell [o miúdo de The Boy with Green Hair (O Rapaz dos Cabelos Verdes, 1948) de Joseph Losey].
A casa de Ben tem figuras estranhas, máscaras e prostitutas. Esta vira palco que recebe o gang de Frank, mais Jeffrey e Dorothy; o filho dela está lá cativo, a câmara move-se na direcção de uma porta fechada e ficamos a saber onde escondem a criança. O momento alto será quando Ben puxa de um microfone-lâmpada (verdadeiro achado na preparação da cena) e faz um playback da música In Dreams, de Roy Orbisson. A limpidez da música e a pureza da letra enchem o ambiente, momento sensível para o espectador e para Frank, esta música é a sua preferida, e fica a vivê-la no limite das lágrimas. Interromperá abruptamente a música e o passeio prossegue, as linhas da estrada entram no plano [Lynch vai fazer bom uso desta ideia da estrada em Lost Highway (Lost Highway: Estrada Perdida, 1997)], e vem mais violência, o carro pára, Frank é espancado.
In Dreams volta, curiosamente sempre em posição in – a música pertence a Frank, ao filme, e fica a pertencer ao espectador que não mais a vai esquecer. No tejadilho do carro, uma prostituta dança, o sangue jorra no rosto de Jeffrey, o face-a-face entre Frank e Jeffrey está entre a violência e a paixão (ou possessão de Frank, que está no limite de o beijar, numa ambivalência de raiva); o momento de representação de Hopper é único e a contracena de MacLachlan exemplar, a música entra em fusão com a violência: “Um palhaço cor de rebuçado chamado Sandman; Vem todas as noites ao meu quarto em pontas dos pés; Só para espalhar pó de estrelas e sussurrar; ‘Vai dormir; Está tudo bem’ (…)”. Na verdade, nada está bem e o pico da violência é atingido como o pico do romantismo, aumentando o volume emocional, o efeito do contraponto permeabiliza as sensações. O filme ganha um território elevado de violência, tal como uma ultra-camada romântica.
Ainda no mundo de Frank, não se pode olhar nos olhos, ele exige isso a Dorothy nos momentos de violência, e a frase que repete “Está escuro” é condição da sua fragilidade perturbada. Em perfeito contraponto, há as zonas cor-de-rosa do lado do mundo de Sandy, onde se agregam os pintarroxos naifs que lhe aparecem num sonho a anunciar “A luz fulgurante do amor” (Lynch torna-se delicodoce). O filme caminhará para as resoluções do mistério, com mais crueza, palcos de morte, fragilidades absolutas: Dorothy nua e espancada, a surgir da noite… Isabella Rossellini viu-se também ela nua e apontada por muitos quando Blue Velvet estreou: face ao seu corpo exposto, a perversão do filme chocou e demorou a ser absorvida – era um objecto estranho, “um obscuro objecto do desejo”.
No rasto de influências possíveis, há Alfred Hitchcock no topo, um realizador que Lynch admira, e em particular Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954), filme eleito do cineasta que ecoa no tema do voyeurismo; ou ainda Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), com as obsessões, fracturas de identidade e mistério; e Psycho (Psico, 1960), a faca de cozinha usada por Dorothy, por exemplo. Luis Buñuel, na veia surrealista, foi naturalmente inspirador (sendo “o surrealismo, o inconsciente a falar”, é muito natural a identificação). A orelha cortada coberta de formigas como sinal de perigo em Blue Velvet, o olho a ser trespassado de Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz, 1929) e a mão coberta de formigas fazem parte do mesmo universo pulsional e orgânico. Kenneth Anger foi, por sua vez, o primeiro a usar a música Blue Velvet num momento do filme Scorpio Rising (1964), que também tem um universo, simbólico e hipnótico, que se desenrola seguindo a lógica dos sonhos, do erotismo e da transgressão.
Lynch, o mais particular cineasta a pensar nos seus processos criativos, falou da imagem de um pato que imagina quando pinta ou faz filmes, dizendo que há uma lógica muito precisa quando o observamos. Vemos o bico, com uma certa textura, assim como a cabeça e as plumas, e as suas patas maiores que o normal a parecerem borracha, para equilibrar um corpo grande e macio… a chave para o cineasta encontra-se nos olhos e o lugar onde se situam, naturalmente na cabeça – se estivessem no bico ficaria sobrecarregado, no corpo perder-se-iam, o seu lugar é mesmo na cabeça, colocados como uma pedra preciosa. Lynch diz então que o segredo é dar atenção aos pormenores que são essenciais para conferirem justeza à atmosfera de cada criação. Depois utilizará, no livro Em Busca do Grande Peixe, a metáfora do peixe para reflectir: “As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas se quisermos capturar os peixes grandes, temos de ir mais fundo. Lá no fundo, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstractos. E são muito bonitos”. Ideias simples, talvez naifs, revelam-se expressivas de um realizador que, além da densidade absoluta dos seus filmes, tem ainda muito humor e procura a leveza com espírito.
Blue Velvet acordará, por fim, a narrativa desta viagem, deste conto noir iniciático, na pacatez do jardim de Jeffrey. Blue Velvet acaba por ser único, fetichista e bem descarnado, obsessivo e penetrante, belo e intenso. Velas a arder, orelhas, ecos de fantasmas, distorções, sons (magníficos sons do sound designer Alan Splet, a quem é dedicado o filme) e músicas orgânicas (aveludadas e límpidas) deambulam na memória do filme e do espectador. Blue Velvet vive e volta a viver entre o pesadelo e o sonho.
Blue Velvet passa hoje, às 21h15, no Fila K Cineclube, na Escola Superior de Educação de Coimbra, no âmbito do ciclo “Film Noir a Cores”.