Não conseguimos ultrapassar o trauma maravilhoso que é Joker (2019) de Todd Phillips. Por isso, publicamos aqui mais duas reacções – de Duarte Mata e Luís Mendonça – a este brutal character study saído da fábrica de Hollywood. Ricardo Vieira Lisboa procura salvar algo das cinzas de Gemini Man (Projeto Gemini, 2019) de Ang Lee. Ao mesmo tempo, um walshiano assistiu no mês que passou à Palma de Ouro de Bong Joon-ho, não querendo deixar de depositar aqui as suas impressões cinéfilas relativamente a este surpreendente sucesso de bilheteira.
Nem é preciso esperar pelos créditos iniciais. O logótipo de abertura, com o símbolo da Warner Bros. de há quatro décadas desenhado pelo enorme Saul Bass, ao invés do modernizado “WB” esvoaçante, deixa o alerta ao espectador da experiência anacrónica cinematográfica que Joker (2019) é. Já ninguém se lembra de filmar ruas assim. Humedecidas, cobertas de lixo, carcomidas nos pavimentos, com o odor do gasto e a textura do vivido sentidos em cada passeio, à medida que os transeuntes estugam o passo sem se meterem na vida alheia a precisar de socorro. É um filme sobre uma cidade. Tribulada, acusticamente habitada pela emergência inquietante de sirenes e buzinas, e onde a violência surge provável nos transportes grafitados por quaisquer obscenidades incompreensíveis. Poderia ser a Nova Iorque da década de 70. A de Serpico (1973), Midnight Cowboy (O Cowboy da Meia-Noite, 1969), The French Connection (Os Incorruptíveis Contra a Droga, 1971) (nem falta uma cena no metro que culmina com um alvejamento nas escadas da estação) ou principalmente a de Scorsese no seu período áureo. É a Gotham de 80. E é um filme sobre um homem. Um homem solitário, alienado, existencialmente angustiado que, ao fim de cada dia na cacofonia e apatia citadinas, sobe ardorosamente uma escada íngreme (lembra-nos a de outro filme de William Friedkin, afinal, falamos de alguém com os seus demónios a precisarem de ser exorcizados), tentando a custo ascender simbolicamente a um patamar de estabilidade mental que se vai gradualmente esbatendo. Um homem que escreve os seus pensamentos mais desassossegadores num pequeno diário, aponta armas reais para alvos imaginários, simula disparos com os dedos na cabeça, e é gradualmente impelido para a morte, loucura e destruição. Poderia ser Travis Bickle. É Arthur Fleck.
Todd Philips pega então na memória da Nova Hollywood para criar um anti-herói anarquista dos marginalizados, dos oprimidos, daqueles a quem o sistema pisa e vira costas com a sua condescendência, dando-lhes um rosto maquilhado e um sorriso imanente, que não tolerará a falta de empatia dos ricos, dos privilegiados e dos indiferentes. Na forma manifestamente realista como indigita a sociedade enquanto responsável por um estado crescente de niilismo moral e violência urbana, Joker recorda essa possibilidade do cinema de outrora em abordar transformações socio-culturais sem fazer deles “filmes de tema” politicamente liberais que se revelam artisticamente conservadores, de repensar o mundo real com as suas questões e apreensões de forma alegórica e intensa, de interrogar as estruturas sociais e de poder pelo encorajamento empático por uma personagem conturbada, de misturar o pessoal com o político pelo enquadramento de um character study agoniado dentro de uma consciência social reconhecível, de, em suma, apontar um espelho ao lado mais aflitivo do espectador e do seu meio de uma maneira matura, perturbante e ambígua. Para além disso, numa época em que a disney-marvelficação do mercado ocorre ao ponto do que poderemos chamar de fascismo cultural, onde certos estúdios cada vez mais acreditam que o propósito dos filmes é o da capitalização máxima pela venda de merchandising e pelo prolongamento de sagas cinematograficamente irrelevantes para lá da exaustão, onde é incutido o pensamento aberrante de que cinema passa por entretenimento pubescente, escapista, confortável, despersonalizado, e que quem não concorda é inevitavelmente portador de uma atitude snobe e elitista, é quase milagroso que um filme tão desconfortante e inconformado tenha a possibilidade de encontrar uma atenção comercial semelhante ao dos insonsos e homogéneos blockbusters com que somos assolados todos os anos. Ninguém sabe o que “o público” (essa entidade abstracta de que tantos se julgam porta-vozes) quer, se está ou não disposto a aceitar algo novo que o remova da sua zona de conforto, até que alguém corra o risco de fazê-lo. Goste-se ou não do resultado, Todd Phillips correu-o. Esperemos que muitos mais façam como ele.
Duarte Mata
O cinema americano precisa de mais filmes como este. Precisa de se voltar para o grande tema do corpo, algo esquecido desde o ocaso da Nova Hollywood e quase completamente erradicado do universo de Super-Heróis da DC e Marvel [salvo porventura Venom (2018), como procurei enaltecer aqui]. Precisamos de mais obras que são somente – um “somente” que é muito – isto: um corpo, um homem e as suas circunstâncias. Todd Phillips – sim, o realizador de comédias inanes como Old School (Dias de Loucura, 2003) e os filmes The Hangover – teve olho de cineasta, sabendo encontrar nas costas e rosto esqueléticos de Joaquin Phoenix a grande paisagem dramática do filme. A sequência em que este, desesperado, em ponto de ebulição psicológica, se refugia no frigorífico é emblemática de um trabalho monumental que aqui se ensaia: o de preservar um corpo, o locus fundamental onde todas as forças sociais – e a loucura, causa e consequência de tudo o que corre mal – exercem a sua mais visível violência.
Portanto, sim, estamos no domínio do Scorsese dos primeiros anos, do seu Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973) ou Taxi Driver (1976). Mas também me surge útil e pertinente uma referência mais recente, a um dos cineastas americanos que mais têm trabalhado este cinema sob o signo do corpo. Falo de Abel Ferrara, o “driller killer” que tem procurado reduzir o cinema ao seu esqueleto fundamental: actores e décor. Para lá, muito para lá da plasticidade dos “homens em collants“, Phillips – fala-se muito de Phoenix, mas o filme também é dele, isto é, resultado das suas corajosas escolhas e de um poderoso ângulo de câmara – produz um dos mais demenciais tratados sobre a modelação social e mediática de um corpo. Um filme de super-heróis, ou de super-vilões, tornou-se um dos mais reais, mais palpáveis, filmes que o cinema americano – ou outro de qualquer espécie e geografia – nos propiciou em muito tempo. Espanto é o que oferecemos em troca, incessantemente, em modo de agradecimento.
Luís Mendonça
Tenho uma amiga que lê muito. Passa dias inteiros a ler. E lê tudo, abastecendo a sua biblioteca com livros em segunda mãos, comprados ao desbarato em lojas de velharias e bancas de feira. De tanto ler, volta e meia, calha-lhe na rifa uma qualquer edição de autor da Chiado Editora (ou semelhante) que confrange os mais resolutos. É raro deixar um livro por terminar, mas quando são de facto péssimos, esta minha amiga tem por hábito rasgá-los e colocá-los no papelão. Quando assisti, pela primeira vez, a uma profanação dessas, espantei-me. Respondeu-me, “Imagina que alguém, que lê pouco, calha em passar a vista nisto! O mais certo é que perca o gosto pela leitura. Livros assim, tão maus, fazem mal à leitura – que anda pelos dias da amargura.” Continuo a suspeitar desta prática: destruir livros, quadros, ou qualquer obra de arte cheira-me sempre a esturro, mesmo que seja bem intencionado. Mas a verdade é que quando saí da sala do cinema, depois de assistir ao novo filme de Ang Lee, passaram-me pela cabeça alguns desvarios pirómanos. Gemini Man (Projeto Gemini, 2019) é tão terrível que se calhasse pegar-lhe uma fagulha, todo o mundo ficaria a ganhar com o braseiro. Algures entre um filme de acção kitsch de Bollywood (uma luta de motas como se fosse uma batalha de samurais) e um 007 da candonga, este brinquedo tecnológico desbarata todo o seu potencial artístico (Lee, Will Smith) numa sucessão de cenas de acção sem graça intercaladas por monótonos diálogos supostamente inspiradores (próximos da auto-ajuda) cheios de metáforas vazias e explicativas (não há símbolo que não seja mastigado pela máquina descritiva do argumento).
E no entanto… há sempre algo a salvar das cinzas. Não fosse o cinéfilo o respigador por excelência dos maus filmes (vide toda a política dos autores). Como não ficar estarrecido – por contraste, claro – com a sequência de perseguição interrompida por um standoff junto a uma escadas ligadas por um espelho (num exercício extremamente clássico de mise en scène)! Ou como não delirar com o brutal falhanço do sistema de 3D HFR (48 fotogramas por segundo) que confunde profundidade com saliência, atirando os olhos do espectador num perturbante jogo de formas e fundos, onde tudo se distorce. Como não rir, com gosto, da crítica à tecnologia e do vilão que “plays God” num filme que, todo ele, é ode à tecnologia e que inventa um novo actor (ou um actor novo – Will Smith adolescente) criado por computador! Ou mais ainda, quando a ultra definição das câmaras digitais serve para uma reflexão sobre os perigos da “imagem perfeita”. E o que dizer do delirante complexo de Édipo, onde é necessário matar o pai “verdadeiro” para não matar o “figurado”? Enfim, Gemini Man até pode ser uma merda, mas o que seria da cinefilia se não se gratificasse no cinema, independentemente de tudo o resto. Para o apreciador há sempre encanto no perfume do estrume.
Ricardo Vieira Lisboa
Comecemos pelos grandes méritos deste filme de Bong Joon-ho: desde logo, a inteligentíssima teia narrativa que vai tecendo, ponto a ponto, à medida que entrelaça a história de uma família na penúria com outra muito abastada. Gisaengchung (Parasitas, 2019) tem a pulsão de thriller – que vem do excelente Madeo (Mother – Uma Força Única, 2009), por exemplo – ainda que esteja atravessado por um fino e ácido comentário social, desmontando a sempre-presente “luta de classes” num mesmo e extraordinário décor – a casa da família rica vai sendo parasitada, como ratos vindos do esgoto, por essa família de maltrapilhos. Em certa medida, esta obra de Bong dialoga intimamente com o seu subestimado filme americano, Snowpiercer (Expresso do Amanhã, 2013), parábola de pendor marxista em que a divisão de classes era transformada num jogo de pancadaria que ia passando de nível em nível, leia-se, de carruagem em carruagem, e em que a perversidade dos mais ricos saía, de certo modo, a ganhar.
Agora falemos do principal problema deste Parasitas: Bong deixa-se enredar demasiado pela sua própria inteligência de escrita. Se a câmara escreve maravilhosamente – coreografa, apetece acrescentar – esta história familiar de forte pulsão trágica e patética, também é verdade que Bong cedo se deixa deslumbrar por todo esse seu ardil narrativo. Os twists e contra-twists retiram força ao essencial que aqui se debita. Com isto, assistimos à transformação das personagens em peões de uma sátira que vai resvalando para a mera caricatura (demasiado cartoony). Não é uma tendência nova no cinema deste cineasta sul-coreano, mas há uma plasticidade, até formal, em Parasitas que nos põe à distância em relação ao drama e nos remete apenas para a posição de espectadores emocionalmente frios do seu “jogo social”. Pese embora esse auto-deslumbramento, Bong está no topo das suas capacidades movendo as suas peças tal como brincando com as nossas expectativas e com o nosso, demasiado humano, “nojo de classe”.
Luís Mendonça