Dia 5 de Novembro é o Dia Mundial do Cinema e para o celebrar a recém inaugurada Casa do Cinema Manoel de Oliveira, em Serralves, exibirá Francisca (1981), na nova cópia restaurada digitalmente, em formato 4K. Isto após a sua primeira exibição na secção de clássicos restaurados do Festival de Veneza, no passado mês de Setembro, e da sua recente apresentação, em Lisboa, no Cinema Nimas, numa sessão de homenagem à recém falecida Agustina Bessa-Luís. Francisca marca a primeira colaboração entre Oliveira e Agustina (a partir do romance Fanny Owen), encerrando a famosa “tetralogia dos amores frustrados”, composta por O Passado e o Presente (1972), Benilde ou a Virgem Mãe (1975) e Amor de Perdição (1979).
Francisca (interpretada por Teresa Meneses) é uma jovem disputada pelos amigos e rivais, Camilo Castelo Branco e José Augusto, acabando por casar com este último, numa relação que nunca chega a ser consumada. Nas palavras do próprio realizador, “[q]ueria mostrar a beleza de uma mulher sacrificada e humilhada”. Portanto, coisa fina e politicamente correcta. Como ver Francisca nos dias de hoje? Essa é a pergunta que esta nova cópia impõe. Para ajudar a enformar o olhar contemporâneo, proponho, nesta edição da rubrica walshiana Recortes do Cinema, um passeio por alguns dos textos mais marcantes sobre o filme.
Dos vários cantos do mundo, apresento aqui excertos de alguns dos pensadores (do cinema) mais marcantes dos anos 1980: em Portugal, João Bénard da Costa, Eduardo Lourenço e Luís Miguel Oliveira; em França, Gérard Courant, Serge Daney e Gilles Deleuze; nos Estados Unidos da América, Dave Kehr; na Austrália, David Heslin.
Os fragmentos dos textos de Dave Kher e Gérard Courant são bem representativos de uma vontade de integrar Oliveira numa certa produção do cinema de autor do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Oliveira é encarado como neo-primitivo, entre o moderno e o clássico, junto com Godard, Straubs, mas também Buñuel e Duras. Tudo boas famílias.
Francisca, o mais recente filme de Oliveira, é apenas a sua sexta longa-metragem em 50 anos de actividade (…). Fica a suspeita de que Oliveira nunca poderia ter amadurecido como artista até à última década – a sua sensibilidade necessitou ser activada por um movimento cultural particular. Ainda hoje [1983], Francisca parece ser o cúmulo do avant garde; teria sido um filme simultaneamente inconcebível e incompreensível em 1942, o ano em que Oliveira realizou a sua primeira longa-metragem. Sem o contexto proporcionado por Godard, Straub, e outros cineastas jovens dos últimos vinte anos, Oliveira não poderia existir. Há a estranha sensação de que Oliveira parece, ao mesmo tempo, percursor do cinema moderno e um dos seus mais gloriosos produtos. (…) Em Francisca, Oliveira usa técnicas modernistas para contar a história (…). Ao invés de assassinar a ficção, como fazem muitos dos modernistas, Oliveira procura purificá-la, retirando qualquer incrustação estilística, camada a camada, deixando por fim a ficção limpa a brilhante, como uma pequena pedra preciosa. E ainda assim, apesar de todo o trabalho de Oliveira em direcção ao elementar e não-adornado, o filme preserva um sentido torneado do barroco, que resulta da incessante e meticulosa observação das flutuações emocionais das personagens. (…) Oliveira divide as personagens, divide as cenas, divide as formas, usando elementos do cinema, do teatro e da literatura de modo a que estes se cancelem mutuamente. Como José Augusto prometeu produzir um anjo na plenitude do martírio, também Oliveira produz uma simples afirmação a partir do excesso de conflitos, confusões e falsidades.
Dave Kehr, “When Movies Mattered: Reviews from a Transformative Decade”: (44-48)
Francisca é um dos raros filmes dos nossos dias a vencer esta fabulosa conquista de fazer pensar, enquanto assistimos à sua projecção, não apenas no cinema, mas também na pintura, no romance e na fotografia. Repare-se em qualquer cena do filme e ver-se-á que toda imagem parece arrancada das entranhas do tempo que o cineasta conseguiu capturar. (…) Em ambientes hiper-burgueses, momentos de desespero transformam-se em cenas muito cómicas (o cavalo no apartamento digno do melhor Buñuel), os diálogos mais brilhantes (tão precisos quanto em Gertrud) são ditos com uma certa neutralidade de um filme de Marguerite Duras, dando a este filme uma espécie de euforia constante, apesar do sofrimento do seu assunto: o fatalismo.
Gérard Courant, “Francisca de Manoeld e Oliveira”, Art press, n° 50, été 1981.
No entanto, aqueles que olharam o filme além do seu momento estético-socio-cultural, viram nele uma reflexão barroca e paroxística sobre o romantismo. Disso são exemplo os textos de Daney (de salientar a análise da dimensão homo-erótica do filme) e o de Eduardo Lourenço (pela via da literatura). Francisca, como muitos dos filmes de Oliveira, é um retrato de paixões apodrecidas pela desilusão e pela morte; daí que o subtítulo publicitário de O Passado e o Presente quase que se possa aplicar a qualquer dos outros filmes do realizador: “um necro filme português”.
Oliveira, mesmo tratando o Romantismo português, é um cineasta do romanesco. Ele sabe que se “um está sempre errado” e que “a verdade começa a dois”, serão precisos três para partilhar um crime, para articular desejo e paixão. Em Francisca o desejo liga os dois homens (será um desejo contido) e a paixão prende um dos homens a uma mulher (mas o movimento da paixão é infinito). Tudo separa os dois (jovens) homens e, por essa mesma razão, eles quedam-se fascinados um pelo outro. (…) José Augusto é ocioso, sem desejo imediato (…). Camilo, de forma crua, diz-lhe: “Tu amas por orgulho, amas o luxo de amar.” O desejo é para os pobres, a paixão para os ricos. O desejo é produção, a paixão é desperdício. (…) A negação da ligação homossexual e o aviltamento da mulher produzem a Mulher, ou seja, um anjo (por vezes, anjo azul). (…) No desejo, o maior problema é nunca se saber exactamente o que o outro quer. É este não saber que faz desejar ainda mais. O que conta na paixão é o que o outro pode, aquilo de que ele/ela é capaz. Indiquei brevemente (mas todo o filme tem a concisão de um teorema) como Francisca parte da negação do desejo (…) para acabar forçando a paixão.
Serge Daney, in Cahiers du Cinéma, n.°330, Dezembro de 1981, p. 36-39 [trad. Cláudia Coimbra/Vigile Alexandre, A Herança de Serge Daney, Lisbon & Estoril Film Festival, 2012]).
Do mais romântico dos filmes falarei romanticamente. Romantismo? O que fica quando verniz da realidade funda na condição da pura paixão. Amor de Perdição dera a Manuel de Oliveira o texto da nossa realidade romântica. O texto de Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen, o pretexto de evocar a ficção dessa realidade. Em suma, a quadratura da vivência romântica da vida. O resultado é o mais belo, sumptuoso e deliberado filme do cinema português. O já longo e admirável percurso de Manuel de Oliveira culmina nesta história impossível como são as histórias reais de dois seres de ficção em busca de um pouco de realidade, vítimas coniventes da ficção sem inocência de Camilo. Não saímos nunca da representação.
Eduardo Lourenço, “A Paixão (Portuguesa) segundo Manuel de Oliveira”: 19 de Maio de 1981.
Há umas das cenas de Francisca, a da entrada do cavalo no escritório de Camilo, que de tão marcante deu origem a uma das parcas referências de Deleuze ao cinema de Oliveira, como exemplo da imagem-afecção. Além dessa cena, há um diálogo que desde 1981 anda nas bocas dos cinéfilos lusos, aquele da ialma ser um vício. Sobre ele escreveu Bénard da Costa. Iconografias que dão forma às cinematografias.
Um único primeiro plano também pode valorizar sucessivamente este ou aquele traço ou partes de rosto, e fazer-nos assistir às suas mudanças de relações. E um único primeiro plano pode reunir simultaneamente vários rostos, ou partes de rostos diferentes (e não apenas para um beijo). Ele pode, enfim, comportar um espaço-tempo, em profundidade ou em superfície, como se o tivesse arrancado às coordenadas de que se abstrai — carregando consigo um fragmento de céu, de paisagem ou de apartamento, um retalho de visão com a qual o rosto se compõe em potência ou qualidade. É como um curto-circuito do próximo com o longínquo. (…). Primeiro plano de Oliveira, os dois rostos dos homens enquanto, em profundidade desta vez, o cavalo que subiu a escadaria prefigura os afectos do rapto amoroso e da cavalgada musical. Vimos, de fato, que não cabia distinguir o primeiríssimo plano, o primeiro plano e o plano próximo ou mesmo americano, já que o primeiro plano se define não pelas suas dimensões relativas, mas pelas sua dimensão absoluta ou a sua função, que é de exprimir os afectos como entidade.
Gilles Deleuze, A Imagem-Movimento: Cinema – Livro 1, 1983
Depois de vermos relances da relação amor-ódio entre José Augusto e Camilo, todos se encontram de novo num baile. É nesse baile que se situa uma das sequências que melhor ilustra o que Oliveira chama “palavra visual”. É o hoje famoso diálogo entre Camilo e Fanny. Camilo diz-lhe que José Augusto é um homem funesto e ela pergunta porquê. “Não tem alma”, ouve como resposta. Mas Fanny replica: “O que é a alma? Uma borboleta também não tem alma e ela sabe como ninguém tocar nas flores”. Pouco depois, Fanny diz-lhe que “a alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é…”. Há muito silêncio e muito ruído, simultaneamente e sem querer ser paradoxal, Camilo quer saber mais. “É?” “É um vicio. A alma é um vício”. Antes de Camilo dizer “Meu Deus” as figuras voltam à posição inicial e o diálogo repete-se. Depois, o turbilhão da dança e a aparição de Raquel, na altura amante ou ex-amante de José Augusto. Foi a segunda vez que Oliveira repetiu uma sequência (fizera-o já com a morte de Baltazar no Amor de Perdição) e essa repetição fixa e fixa-nos. Naquele momento está tudo o que há para saber, está tudo o que há para fixar.
João Bénard da Costa, “Folha” da Cinemateca, in Press-Kit: Francisca, 2019.
Das penas dos nossos dias, recorto textos de David Heslin e Luís Miguel Oliveira, o primeiro uma perspectiva #metoo sobre o filme, o segundo um olhar desiludido sobre o poder do cinema na sociedade. Olhares contraditórios, portanto, a partir de um filme que funciona como bola de cristal ao contrário: podemos ver nele imagens dos passados prometidos.
A perversidade abunda em Francisca; não apenas no desejo masculino por Fanny (…), mas também na cumplicidade masoquista de Fanny com o papel que José Augusto lhe dá. E se o objectivo humano supremo é a busca da felicidade, o que poderia ser mais perverso do que entregar a própria vida à anedonia? Grande parte da sequência inicial do filme é dedicada ao estabelecimento da amizade (e desprezo) compartilhada por José Augusto e Camilo. O foco logo muda, no entanto, para a paixão, sequestro e casamento de José Augusto com Fanny, uma jovem sobre a qual ele pode projectar as suas fantasias de sofrimento romântico byroniano . (…) Seria uma leitura errada interpretar Fanny como a vítima passiva nesta dinâmica. Como mulher do seu tempo, ela é prisioneira de seu género e classe, presa numa situação diabólica quando José Augusto a rejeita. Mas ela também é uma leitora ardente de Byron e abraça estoicamente seu próprio sofrimento, afirmando que ama José Augusto “da maneira que Deus ama os pecadores”. No entanto, há brechas na sua obediência: numa cena, confronta José Augusto sobre os seus maus tratos; noutra, expressa o seu desejo de conquistá-lo sexualmente.
David Heslin, “The God Anhedonia: Manoel de Oliveira’s Francisca”, in Senses of Cinema, September 2016.
Num certo sentido, Oliveira transportava e dava nome a uma ideia de cinema, e a forma como a “vox populi” se apropriou dela, sobretudo a partir dos anos 80 (quando Oliveira se tornou de facto um “emblema”) mostra-o bem, em todas as suas contradições: Portugal, e os portugueses, aprenderam a admirar a figura de Manoel de Oliveira ao mesmo tempo que se desinteressavam, quando não detestavam, a ideia do seu cinema e do que ele representava. É bem verdade que os cento e tal mil espectadores de Francisca, no princípio dos anos 80, terão sido já nesse tempo um fenómeno anómalo, mas não deixa de ser uma contradição dilacerante que nos últimos anos, quando se começaram a suceder as consagrações “oficiais” de Oliveira, o público para os seus filmes tenha também diminuído de forma dramática, cortando até a possibilidade do escândalo ou da indignação – seria hoje impossível outro caso Amor de Perdição, o cinema, e particularmente o português, é hoje seguido com uma indiferença que não o permitiria.
Luís Miguel Oliveira, in Publico, “O mistério de Manoel de Oliveira“, 3 de Abril de 2015.
Francisca é um filme que, não convirá esquecer, foi realizado por um septuagenário entradote que os novos turcos do cinema viam como figura tutelar (o Renoir deles – e o nosso?). O próprio Oliveira pensava já em fechar ciclos e encerrar projectos. Logo após a rodagem de Francisca decidiu fazer o seu filme póstumo, Visita ou Memórias e Confissões (1982), porque antecipava o seu fim terreno como coisa breve. Um canto de cisne sobre a derrota de uma batalha perdida contra a liquidação de dívidas resultantes da delapidação da sua fábrica de passamanarias durante o PREC [batalha pessoal perdida que antecipava já as série de batalhas nacionais perdidas de NON ou a Vã Glória de Mandar (1990)]. Não sabia ele que o grosso da sua obra estava ainda por vir. Francisca é portanto um objecto híbrido que fecha e abre portas na obra de Manoel de Oliveira. Ler o que se escreveu sobre o filme, ao longo dos anos, mas especialmente à data da sua estreia, é espreitar por essas janelas (cada qual aberta, de par em par, para uma paisagem diferente). Cabe agora abrir as portinholas que urgem ser abertas e defenestrar o que urge ser defenestrado.