Ainda há relativamente pouco tempo (década e meia) a cabina telefónica era cenário de uma longa-metragem de sucesso considerável – Phone Booth (Cabine Telefónica, 2003), escrita pelo grande Larry Cohen. Nesse filme em tempo real, Colin Farrell, encurralado naquele pequeno espaço por um invisível atirador furtivo, era obrigado a confrontar os seus defeitos e fraquezas à vista de toda a gente. Aos olhos de hoje, a premissa parece esdrúxula. Quem é que se enfiaria numa cabina telefónica em primeiro lugar? É difícil imaginar um plano maléfico mais rebuscado.

Como também é complicado conceber algo mais anódino, menos conducente às inquietações e emoções fortes do thriller do que a cabina telefónica. Outrora uma peça de mobiliário urbano familiar e ubíqua, sobrevive, nas cidades modernas, como um anacronismo, uma relíquia de outra época que alguém se esqueceu de remover por completo do espaço público. Muitas vezes, em estado de ruína ou de degradação total (duvida-se que haja muitas cabinas funcionais por aí).
Um dos principais feitos de La cabina (1972), curta-metragem realizada por Antonio Mercero (co-escrita por este e José Luis Garci) para a TVE no estertor da ditadura franquista, foi precisamente ter convertido a cabina telefónica num objecto de terror, na fonte de inúmeros pesadelos.
E, no entanto, o telefilme de Mercero começa como uma aparente comédia de costumes. No máximo, uma comédia negra. Um homem igual a tantos outros (gravata, careca, bigode), interpretado por José Luis López Vázquez de la Torre, entra numa cabina telefónica, na qual fica trancado. Rapidamente, surge uma multidão curiosa a rodeá-lo. Alguns tentam ajudá-lo a sair. Outros, meros mirones, ficam a assistir. Há velhas a tricotar, valentões a atirarem-se contra o vidro, operários a roubar guloseimas de uma travessa, polícias a descomandar as operações. O homem, alvo de todas as atenções, não consegue esconder a vergonha, mas é espectador privilegiado do espectáculo montado à sua volta.
A indefinição é o que o filme tem de mais inquietante – a ténue mas penetrante sensação de mal-estar a transformar-se em angústia pura; a lógica de pesadelo, incompreensível e inexorável.
Esta ideia da sociedade a ser perscrutada, do observador a ser observado (quem observa quem?) é sublinhada pela aparição de um espelho literal, no qual o homem se vê a si e aos seus concidadãos reflectidos. Ninguém pode acusar Mercero e Garci de serem subtis – aliás, La Gioconda está triste (1977), telefime do mesmo género assinado pelos dois, é bem menos interessante por ser muito mais óbvio e explicativo. Outra metáfora visual recorrente em La cabina é a do animal preso numa armadilha ou a do espécime selado num frasco, como se aquele homem – que ninguém consegue ouvir cá de fora e que se expressa por uma crescentemente frenética pantomina – fosse um insecto pronto a ser dissecado num laboratório. Reforçada pela cena do anão a segurar a garrafa com um barquinho lá dentro (filmada numa estrada fronteiriça portuguesa). Outra metáfora remete a cabina telefónica para a imagem do caixão de vidro, como o do funeral pelo qual o homem passa quando já vai em andamento.
Depressa se percebe que La cabina é uma alegoria. Mas alegoria de quê? Os trabalhadores anónimos (os planos muito abertos ou muito fechados não permitem que se lhes veja a cara) que colocam a cabina vermelha a meio de uma praça modernaça de Madrid no princípio e no fim do filme serão agentes da ditadura? Ou representarão algo mais profundo e vago, uma ameaça ininteligível? A viagem final do homem pelas ruas da cidade em direcção aos descampados dos arrabaldes madrilenos será a sua subida ao calvário? A cabina um andor de uma procissão funesta? O quase duplo – homem, careca, sem bigode – também aprisionado numa cabina que encontra nessa jornada é novo reflexo de si mesmo? Servirá para demonstrar que a verdadeira vítima da sociedade (no dealbar dos anos 70? Desde sempre?) é o homem comum? A única coisa que se sabe do protagonista é que tem um filho (ele próprio, por pouco, não fica retido na cabina). O resto são suposições. Antes de entrar na cabina, provavelmente preparava-se para ir para o trabalho. Provavelmente, terá uma mulher. Provavelmente, nada fez de assinalável na vida. Nem de bom, nem de mau. É inocente? E, se não, é culpado de quê?
A indefinição é o que o filme tem de mais inquietante – a ténue mas penetrante sensação de mal-estar a transformar-se em angústia pura; a lógica de pesadelo, incompreensível e inexorável.
Nos diferentes países onde foi exibida (Portugal e Reino Unido, entre outros), o final cruel e brutal de La cabina apanhou os espectadores – incluindo crianças e adolescentes – desprevenidos. Como exemplo, Charlie Brooker, autor de Black Mirror, não esquece a primeira vez que, com tenra idade, viu o telefilme espanhol. Tal foi o efeito que a influência é bastante pronunciada na ficção televisiva do inglês, sobretudo no seu projecto mais conhecido.
Sinal de outros tempos, em que as televisões públicas transmitiam em horário nobre o estranho, o esquisito, o fora de vulgar. Em que o televisor na sala de estar não oferecia apenas anestesia aos cidadãos depois de um extenuante dia de trabalho. Em que as melhores produções televisivas não estavam reservadas a quem pode pagar todos os canais de cabo e serviços de streaming disponíveis. Hoje em dia, esse conceito de serviço público de televisão afigura-se tão anacrónico quanto a cabina telefónica.