Os 210 minutos de The Irishman (2019) asseguram que haja tempo para dar ao tempo do filme o necessário para largarmos expectativas e preconceitos. Este é um filme que se insere na linhagem que Scorsese iniciou com Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto, 1973) – se dúvidas houvesse lá está Harvey Keitel para as tirar – e que teve o apogeu com Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) e prolongamento no também óptimo Casino (1995). O expediente narrativo é semelhante ao de Goodfellas e de Casino: alguém conta a sua história e vai criando um mosaico que vai das incidências locais às repercussões na história de um país. Da escala do indivíduo, Frank Sheeran (Robert De Niro), chegamos à escala nacional e ao mito da morte sem cadáver de Jimmy Hoffa (Al Pacino), líder sindical dos camionistas norte-americanos que no seu tempo foi tão popular quanto Elvis Presley. O património da história do filme pertence a Frank Sheeran pelo facto de ser o último sobrevivente dos factos narrados. O que Frank partilha connosco é a sua versão, o que sempre negou ao FBI e que veio a entregar ao biógrafo Charles Brandt, por razões que o filme aponta para a tentativa de redenção da imagem de Frank aos olhos de uma das suas filhas, Peggy, e também com o desejo de ganhar uma certa posteridade, ele que no final do filme constata com amargura que as novas gerações já não sabem quem foi Jimmy Hoffa.
Martin Scorsese há muito que assegurou um lugar de destaque na História do Cinema. Não sofrerá das mesmas inquietações de Sheeran mas pode ter sentido necessidade de recuperar um ceptro que é seu, o do filme da máfia norte-americana, talvez posto em causa com o sucesso da excelente série The Sopranos (1999-2007), de David Chase, e obscurecido pelos filmes sempre menores em comparação que Scorsese fez nas últimas duas décadas. O realizador volta a um território familiar para contar uma história de protagonistas envelhecidos, como ele, que já não se alimenta da euforia de outros tempos, trocada por uma serenidade de quem vê a morte aproximar-se como uma inevitabilidade de todas as vidas, das mais anónimas às mais célebres.
Frank Sheeran poderia ter levado uma dessas existências anónimas, não fosse uma das suas pequenas ilicitudes ter acabado em tribunal, onde Sheeran foi defendido pelo irmão de Russell Bufalino (Joe Pesci), destacado elemento da máfia de Filadélfia. The Irishman é um filme de amizades e de uma fidelidade maior que todas as outras. Frank Sheeran foi toda a vida um soldado exemplar, desde os campos da Segunda Grande Guerra combatida por ele em Itália, até às fileiras da máfia onde desempenhou escrupulosamente todos os trabalhos que lhe pediram, e que tiveram no seu patrão Bufalino, depois também seu amigo, a maior voz de autoridade.
The Irishman pode ser visto como esse caixão onde Scorsese escolheu perpetuar a recordação da sua mestria neste particular género de filmes.
O labirinto das memórias de Frank Sheeran desenha um mapa de múltiplas curvas, semelhante ao que o protagonista risca para uma viagem onde os casais Sheeran e Bufalino dividem a condução que os levará de Filadélfia até Detroit, destino do casamento de uma das filhas de Bill (irmão de Russell, outrora advogado de Frank). O trajecto visa corresponder a pequenas tarefas de recebimento de pagamentos e acabará por intersectar com o destino último de Jimmy Hoffa. A narração é pausada, os homicídios do passado são contados de modo fugaz, e quando a violência irrompe é de forma brusca e sem qualquer espécie de glória para os matadores ou de desonra para os mortos. O inimigo supremo é a passagem do tempo, e os que não acabam baleados no asfalto conhecerão a humilhação de uma próstata atacada pelo cancro, ou das incapacidades motoras deixadas por um acidente vascular cerebral. É brilhante o momento próximo do fim quando Frank Sheeran escolhe o caixão onde quer ficar e o jazigo que o livrará da cremação ou de uma residência sete palmos abaixo da terra.
The Irishman pode ser visto como esse caixão onde Scorsese escolheu perpetuar a recordação da sua mestria neste particular género de filmes, e é igualmente modesto e particular como o caixão verde escolhido por Frank. O último plano mostra-nos a porta do quarto que Frank ocupa numa residência de idosos, e que ele pedira para deixarem semiaberta. Já antes víramos Jimmy Hoffa fazer o mesmo num quarto de hotel em Chicago, partilhado décadas atrás com Frank. O pormenor pode apontar para o estado de alerta em que estes homens sempre viveram, o receio da chegada brusca e violenta da morte, ou então para uma necessidade de nunca se fecharem totalmente para os outros, o medo da chegada de um fim que os encontrasse na mais absoluta solidão. É uma belíssima despedida de Martin Scorsese, ainda que não se trate de uma despedida em termos definitivos.