Ao longo dos mais de vinte cinco anos que levou Terry Gilliam para finalmente terminar The Man Who Killed Don Quixote (O Homem Que Matou Don Quixote, 2018), várias foram as iterações que o projecto foi sofrendo, e vários os rascunhos de guião que foram sendo escritos e re-escritos, para diferentes actores, diferentes orçamentos, diferentes regiões e diferentes momentos históricos. Sobre uma das suas versões mais próxima da definitiva, já depois do desaire com Johnny Depp, o realizador explicou: “I’m incorporating the idea of the damage that films do to people, so it’s become a bit more autobiographical.” De facto, a tomada de consciência e o mea culpa público de Gilliam faz-se na sequência de inúmeras acusações de despotismo, de trabalhar em condições perigosas e potencialmente traumatizantes [a propósito, leia-se o interessante artigo sobre o legado de 30 anos de The Adventures of Baron Munchausen (A Fantástica Aventura do Barão, 1988)]. The Man Who Killed Don Quixote é um filme que se apresenta como exercício de autoflagelo, entre a purga e o masoquismo.

Como se percebe nos primeiros minutos do filme, depois do cartão de abertura onde se lê “após 25 anos fazendo e desfazendo…” e de uma sequência de abertura em que se revela o dispositivo do filme-dentro-do-filme, The Man Who Killed Don Quixote será uma sucessão de meta-referências ao próprio projecto, onde o protagonista é simultaneamente personagem do livro de Cervantes e realizador do filme que o adapta (num labirinto de espelhos e reflexos não especialmente confuso). O personagem-realizador, interpretado por Adam Driver, atravessa um arco narrativo que o leva de Sancho a Quixote, isto é, de burgesso desconfiado a génio aluado. É uma assumida ferramenta de auto-mitificação de Gilliam, onde o cineasta-dentro-do-filme é atormentado pelo peso do seu espírito visionário e pelo seu amor à aventura e às suas personagens (um pouco como quando, num programa de entrevistas a celebridades, se interroga o convidado sobre “o seu maior defeito”, e a resposta versa sempre sobre uma falha que é afinal edificante). Gilliam é entrevistador e entrevistado, e seu o filme tem momentos de contorcionista auto-felação.
The Man Who Killed Don Quixote sofre daquilo que molesta todo o cinema de Terry Gilliam: uma falta de economia que converte os seus filmes numa série morosa de sequências mais ou menos ousadas, sem qualquer densidade dramática e pejada de buracos narrativos.
No entanto, talvez a melhor cena do filme seja aquela que completa a transformação de realizador em Sancho, no final do primeiro acto. No romance de Cervantes, Quixote é um homem assombrado pela leitura excessiva de romances de cavalaria, ao ponto de se convencer que é tão cavaleiro como os que descobre nas páginas dos livros. No filme de Gilliam, o Quixote é um simples sapateiro não-actor descoberto por um jovem realizador que, de tanto ver o filme em que actua, se convence que é o personagem que antes interpretava (e agora vive, Quixote vive!). Pois bem, esse já-não-tão-jovem realizador entra num cinema improvisado onde se projecta o seu filme de formatura. A tela está rasgada, ele atravessa o rasgão e descobre, do outro lado, o seu actor tomado pela ilusão do cinema, qual Benshi do cinema mudo japonês. Gilliam enquadra Driver defronte do telão, sobrepondo-o com a figura de Sancho. Ali, na tela de cinema, eles são o mesmo [sequência na imagem acima]. O realizador entrou no seu filme, confundindo-se com os seus personagens e actores (experimentando o outro lado, sendo agora dirigido pelo seu actor). Poucos segundos depois, o projector cai ao chão e incendeia a sala. Tanto o Quixote como o Sancho-realizador escapam às chamas envoltos nos lençóis esfarrapados que faziam de ecrã. O objecto fílmico pode decair, pode até perder-se totalmente, mas a sua carga cultural, o seu universo público (feito entre todos – realizador, actores, técnicos, espectadores, críticos…) permanece, como manto que cobre, literalmente, os personagens das chamas do cinema e os traz ao exterior, como fantasmas.
The Man Who Killed Don Quixote, além das pretensões mitológicas, sofre daquilo que molesta todo o cinema de Terry Gilliam: uma falta de economia que converte os seus filmes numa série mais ou menos morosa de sequências mais ou menos ousadas, sem qualquer densidade dramática e pejada de buracos narrativos solucionados por sucessivos e cada vez mais toscos deus ex machinas. Há cenas, como a anteriormente descrita, que se destacam pela criatividade e pela força simbólica, mas na maior parte dos casos o que fica é a sensação de que assistimos a um palimpsesto em acção, um argumento donde se destacam as várias camadas que compõem as diferentes versões que o filme foi tendo, sobrevivendo uma ou outra ideia às várias necessidades de compromisso. Tudo amanhado pelo dispositivo “meta” que justifica qualquer opção, por mais rocambolesca que seja, contrariando a natureza do folhetim que procura homenagear.
A certa altura, entramos numa peça de teatro feita no Convento de Cristo, para o divertimento de um financiador russo do filme que está a ser filmado no sul de Espanha – mas com caretos do Minho e os Tabuleiros de Tomar –, tudo trajado de época, mas com smarthphones no bolso, para reconstituir – com efeitos de cinema – a viagem à lua do Quixote, para citar o projecto igualmente atribulado de Orson Welles em actualizar o romance de Cervantes.

Aliás, quando via o filme só me ocorria (não só mas também devido à coincidência no décor) uma passagem que descreve um episódio particularmente divertido, no capítulo escrito por Tiago Baptista sobre o cinema português dos anos 1920 no livro Cinema Português: Um Guia Essencial. Passo a citar (sublinhado meu, que parece justificar as linhas anteriores).
“[A] museologização da cultura popular em que todos os seus aspectos materiais são reduzidos ao seu valor de exposição – e convocados apenas na medida em que podem reduzir-se a esse mesmo valor de exposição –, corresponde, segundo creio, à maneira como os filmes ‘tipicamente portugueses’ do início dos anos vinte mostravam e incluíam nas suas narrativas, muitas vezes a qualquer custo, (..) paisagens, tradições e monumentos nacionais [E se porventura alguém não percebia a relevância narrativa de uma cena desse tipo, como por exemplo a sequência do filme A Sereia de Pedra (1922) onde se via um actor a subir e a descer as paredes do Convento de Cristo, logo surgia uma voz conciliadora para justificar o que parecia injustificável: «Mas se assim é necessário para se mostrar aos estrangeiros, e mesmo aos portugueses, os maravilhosos monumentos que possuímos…» (F. de Carvalho in Invicta Cine n.2, 27 de Abril 1923)]. Muitas destas cenas funcionavam como verdadeiras suspensões narrativas, um pouco como se no interior de um filme de ficção tivesse sido enxertado um trecho de um filme documental. Foram estas suspensões narrativas que valeram a estes filmes a fama de terem uma montagem lenta ou mesmo inábil e de falharem os pontos de interesse dos romances originais de que eram por vezes a adaptação. Julgo, no entanto, que estas interrupções ‘tipicamente portuguesas’ da acção – com planos de belezas naturais, de monumentos nacionais ou de tradições regionais que nos dão uma imagem museologizada do país – não são tanto provas da debilidade artística destes filmes, como sinais de um processo de «objectificação cultural» característicos deste período, através do qual se reduzia a cultura a uma questão de património e se subordinava a expressão artística a uma função de documentação desse mesmo património.”
Medidas as diferenças óbvias entre as épocas e os contextos de produção, também no filme de Gilliam existe uma museologização da cultura popular. Só que ao contrário das preocupações patrimoniais do cinema do início do século XX, as suas preocupações são próprias de um olhar de turista que mistura tudo na trituradora do exótico que olha para a cultura latina como um bolo informe cheio de ciganos de dente de ouro, alcoólicos violentos, prostituas sonhadoras, figuras de burca, velhinhas com verrugas, castelos medievais, conventos da inquisição e pitorescas paisagens rurais (à imagem das produções francesas que se filmavam em Portugal na década de 1980). Um delírio visual próximo das butiques que invadiram recentemente as baixas de várias capitais de distrito, O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa, sendo The Man Who Killed Don Quixote o seu equivalente cinematográfico.
Fica-me, no entanto, a cinefilia que encharca muitos dos melhores gags do filme, incluindo as referências ao cinema de Pasolini, obviamente ao de Welles e Eisenstein, passando pelo delicioso final, que cruza os desenlaces de Casablanca (1942) e Some Like It Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959). Por aí o filme concretiza, ainda que pela rama, a sua vontade de entrar – de facto – no cinema, observando o mundo através do dito manto sujo e roto que é o ecrã, assombrando-nos com as suas imagens do passado.