Too Old to Die Young (2019) é uma pulp fiction neo noir e new age, letárgica, de beleza tóxica, insuflada pela cor dos néons e pela banda-sonora electrónica, criada por Nicolas Winding Refn e Ed Brubaker para o serviço de Video on Demand da Amazon. É composta por 10 episódios de duração muito oscilante – o mais curto tem meia hora e alguns vão além da hora e meia – que podemos assumir tratarem-se de partes que compõem um filme de 13 horas que por razões óbvias não poderia ser apresentado na sua forma completa. Tenho a certeza que foi desta forma que o realizador dinamarquês encarou o projecto. Existe a televisão de autor, e depois há a televisão de artista e desde as experiências de David Lynch com este meio que não se via algo como Too Old to Die Young, que grosso modo sugere uma versão longuíssima de Blue Velvet (Veludo Azul, 1986): obsessões comuns, o confronto da (relativa) pureza com a perversidade, uma narrativa por camadas que revelam dimensões do macabro que se ligam ao desejo das personagens e do espectador de assistir ao sórdido filtrado pela ficção que o torna suportável. A série de Refn e Brubaker tem ainda a componente igualmente lynchiana do conto de fadas em versão muito negra, convocando arquétipos das variadas narrativas, mitologias, e folclores. Num momento próximo do final da série, uma personagem conta a sua versão do capuchinho vermelho, que envolve violação e vingança sangrenta.

É de cinema que falamos quando falamos de Too Old to Die Young. Nicolas Winding Refn estica os elementos do seu cinema em afasia e hieratismo, e serve-os num ainda mais requintado e barroco banquete de cor, música, e violência.
O cinema de Nicolas Winding Refn começou a ser visto nas salas portuguesas com o aguirreano Valhalla Rising (Valhalla Rising – Destino de Sangue, 2009), a que se seguiram o walterhilliano Drive (Drive – Risco Duplo, 2011), o edipiano e samurai Only God Forgives (Só Deus Perdoa, 2013) e o feliniano [com um só “l”, porque remete para Cat People (A Felina, 1982, de Paul Schrader)] The Neon Demon (The Neon Demon – O Demónio de Néon, 2016). Too Old to Die Young liga-se, em particular, aos três últimos. O universo de pulp fiction de Drive estende-se de Los Angeles até ao México. O lado coreográfico da violência que pressupõe um ritual de espera antes que se faça sangue de modo brutal e brusco vem de Only God Forgives. A colocação da tónica no protagonismo feminino que se liga a dimensões esotéricas que permitem especular com as palavras e as imagens estava já em The Neon Demon. É de cinema que falamos quando falamos de Too Old to Die Young. Nicolas Winding Refn estica os elementos do seu cinema em afasia e hieratismo, e serve-os num ainda mais requintado e barroco banquete de cor, música, e violência. As personagens da série dão-nos a conhecer polícias fascistas, gangsters negros que ouvem muito ska, violadores e pedófilos que apregoam a supremacia branca, pornógrafos que fazem filmes onde as mortes e as violações são reais, elementos de um cartel mexicano que tiram prazer da crueldade que exercem para mostrar o seu domínio e a sua impunidade, e que entre quatro paredes manifestam uma sexualidade ambígua feita de rituais de subordinação e penetração anal, e ainda assistentes sociais de apoio a vítimas de violência e maus-tratos, que em paralelo oferecem serviços de assassínio por contrato, com recurso a indivíduos para os quais o desejo e o acto de matar são o único meio de serenar a sua concepção niilista da espécie humana.

Em termos formais, a autocomplacência de Nicolas Winding Refn rebenta igualmente com os pressupostos da ficção televisiva, mesmo a de autor. Planos longuíssimos para longos silêncios, travellings numa direcção e em continuidade na direcção oposta com entradas e saídas de personagens, e recorrentes panorâmicas de 360 graus que se extasiam com o vazio do deserto ou o recheio de uma mansão que sinaliza o culto da figura do seu proprietário. Ainda o barroquismo das luzes, das formas, até de um desaceleramento da acção que serve o fetichismo do autor, de tudo isto se compõe Too Old to Die Young, que se nos afigura uma catedral onde a morte é celebrada como purificação inglória de um mundo onde a espécie humana caminhará para um destino de mais violência até que se chegue ao último homem. O catálogo é extenso e em jeito de comprazimento último dos criadores, temos direito aos dois episódios finais que nos dão uma espécie de outtakes daquilo que antes tinha ficado dito, sugerido e encerrado no grau máximo da tortura. Esta homilia punk (no sentido de no future) deve muito do seu impacto visual ao trabalho de dois excelentíssimos directores de fotografia, que se dividiram entre os episódios mexicanos (Diego Garcia, colaborador de Apichatpong Weerasethakul, Carlos Reygadas e Gabriel Mascaro) e os episódios americanos (Darius Khondji, cujo currículo inclui filmes de David Fincher, Michael Haneke, Roman Polanski, Woody Allen, e tantos outros). Dois mestres no uso que dão à luz e à cor, que nos inebriam com as suas imagens. Tudo ali exclama cinema, menos a dimensão do ecrã que nos possibilita vê-las.