Emmanuel Carrère, escritor e dramaturgo com uma obra dedicada às questões da identidade e vulnerabilidade do indivíduo, ocupou-se do célebre “caso Romand”, que sacudiu a sociedade francesa nos anos 90: Jean-Claude Romand fingiu durante 18 anos que era médico na OMS e quando se perspetivava a sua exposição, matou a tiro os pais, a mulher e os filhos, e pôs fogo à residência da família; Romand, que não conseguiu materializar o suicídio, foi entrevistado na prisão por Carrère, com esse material a constituir o suporte para a edição de L’ Adversaire (2000, editado em Portugal pela Tinta da China este Verão). O livro expôs uma desmesurada impostura ficcionada pelo protagonista, que não concluiu a licenciatura em medicina e empregava os seus dias em parques de estacionamento e em errâncias que lhe permitiam alimentar uma narrativa que compreendia falsos investimentos de elevadas somas de dinheiro, entregues a Romand por familiares e amigos e que constituíam o sustento da sua família.
O livro de Carrère e o filme homónimo (de Nicole Garcia, 2002) apresentam Romand devedor do título (Adversário é, no sentido bíblico, uma das denominações de Satanás, o oponente de Deus), devido ao maquiavélico comportamento e à crueldade do desfecho. Mas o resultado das entrevistas e investigação de Carrère também traçam no protagonista uma conduta serena, com traços de melancolia, o que terá contribuído para a ampla duração da farsa.
É aqui que entra Laurent Cantet, que depois de um filme sobre o mundo do trabalho, Ressources Humaines (Recursos Humanos, 1999), se lançou na adaptação (livre) do “caso Romand”, no ano seguinte à publicação do livro de Carrère, numa obra que começa a acertar na definição do título: L’ Emploi du temps (O Emprego do Tempo, 2001). Ao contrário do filme protagonizado por Daniel Auteil, a obra de Cantet distancia-se dos eventos reais, com um protagonista tranquilo e meigo que, incapaz de comunicar à família o seu despedimento, se evade através de um cargo fictício na ONU. Vincent desfia inúmeras narrativas, que lhe garantam o conforto da solidão no emprego do seu tempo, sem abdicar dos dispositivos familiares, na criação de uma identidade que contraria a obrigação de participação do homem moderno nos mecanismos do trabalho, na procura da invisibilidade, dissolvendo-se nos reflexos dos envidraçados das portas e janelas dos escritórios por onde circula anonimamente, ou em deambulações por uma natureza indómita, de um percurso pelos Alpes que desagua numa cabana apartada do mundo.
Um protagonista portador de uma doce melancolia que encontra contentamento quando percorre, sem destino, uma autoestrada e que, infantilmente, acelera a par de um comboio. A personagem desperta empatia no espectador (ao contrário do que sucedia com o psicopata Romand) que se reconhece em Vincent, no acumular de frustrações e no desejo de mudar de vida, na obrigatoriedade de suspendermos a nossa identidade para nos sentirmos parte produtiva de uma sociedade trituradora. Na noite em que Vincent é exposto, ele afunda-se no negrume da noite, num desaparecimento metafísico para, numa alternativa ao suicídio, reaparecer num epílogo, numa entrevista de emprego, que a princípio parece recolher a sua motivação, mas que revela o ingresso do romântico protagonista num novo ciclo de insatisfação.
Pouco depois de escrever O Adversário, Emmanuel Carrère estreia-se na realização com La moustache (Amor Suspeito, 2005). O protagonista Marc, interpretado por Vincent Lindon, pergunta à mulher se gostaria de o ver sem bigode: ela responde que desde sempre o conheceu com aquela pilosidade. Marc, numa espécie de cerimonial, rapa o bigode, mas nenhuma das pessoas que o rodeiam parece constatar a mudança, até que ele as confronta com a alteração: a mulher, os amigos, todos lhe asseguram que ele nunca usou bigode. Perante isto, Marc sente-se, num primeiro estádio, alvo de uma troça, para depois, quando o problema persiste, mergulhar num forte vazio existencial, numa alienação assistida por disfunções da memória, com o mundo virado do avesso, como se a ausência daquele bigode o tivesse privado da verdadeira identidade.
Com o espectador contaminado pela dúvida do protagonista, num registo de (falsa) comédia tomada por um realismo que acentua a parca fiabilidade das perceções, numa demonstração da ténue fronteira entre os territórios da sanidade e da perdição, Marc viaja para Hon Kong, uma escapatória transcendente, na esperança de reencontrar a existência perdida. O errante protagonista empreende repetitivas viagens de barco para as ilhas de Hong Kong, na tentativa de inscrever algo na sua memória e, no desfecho, contrariando o livro que escrevera vinte anos antes, Carrère força Marc a abdicar da sua verdade, demovendo-o do suicídio.