Prestes a completar uma década de existência, a distribuidora Alambique tem sido determinante a alargar não apenas o espectro dos filmes que nos têm chegados às salas, mas também a pensar os desafios tecnológicos, geracionais e comerciais da actividade da distribuição cinematográfica em Portugal. Mostrou filmes importantes, assim de memória lembro A Vida Invisível (2013) de Vítor Gonçalves, João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei (2014) e Ramiro (2017), ambos de Manuel Mozos, o cinema do iraniano Asgar Farhadi, o maravilhoso Little Men (2016) de Ira Sachs, Lucky (2017) de John Carroll Lynch ou, já este ano, um dos filmes da temporada Gisaengchung (Parasitas, 2019) de Bong Joon Ho. Em DVD, editou colecções da obra de Jim Jarmush, Xavier Dolan, Luchino Visconti, Ettore Scola, Roy Andersson, Marcello Mastroianni, ou a imperdível colecção No Meu Cinema de João Bénard da Costa.
Em 2016, a Alambique criou a sub-marca Cinema Bold que visa aprofundar uma outra relação entre a mostragem de filmes e a procura do seu público. Desde logo ao escolher trabalhar apenas um filme por mês (12 por ano), fazendo essa selecção não apenas de obras mais recentes de autores conhecidos, ou que tenham estado em festivais internacionais, como também de reposições que possam por algum motivo, beneficiar de um revisionamento anos após terem sido lançadas. A ideia é apostar numa estratégia transversal que, não abdicando da estreia em sala, quase simultaneamente, faça a estreia em DVD, e plataformas video-on-demand (VOD). Já este ano, a editora lançou uma caixa de DVDs que procura compilar alguns desses filmes com chancela Bold. Como se verá, a heterogeneidade de géneros, autores e épocas dos filmes mostra como a definição de bold é um trajecto difícil de definir, atravessando gostos, previsões de público, estratégias de lançamento e temas pertinentes. Quem ganha é o espectador que, ainda corpo-a-corpo com o formato físico e caseiro do filme, ou já no espaço desmaterializado da internet, retém algo dessa forma ousada e desempoeirada de mostrar cinema.
O que se segue é uma espécie de resumo comentado dos filmes que se podem encontrar na dita caixa. Talvez no final, o leitor consiga perceber um pouco mais da difícil tradução de bold para português.
Antes de se estrear com este filme na realização já Craig Zahler era um novelista de westerns noir e um cantor e baterista de black metal. Estes dois veios artísticos talvez ajudem a compreender toda a dimensão literária, mas também aquela outra, plena de raiva e violência, de uma obra como Bone Tomahawk. Por momentos parece que desaguamos no inferno de The Hills Have Eyes (Os Olhos da Montanha, 1977) ou num popular filme de canibais. Noutras vezes vem-nos à memória o arco mais convencional e pensamos em The Searchers (A Desaparecida, 1956) ou, com esforço, na viagem western sem muito espaço visível, sem sair do palco das conversas, como no belo Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010) de Kelly Reichardt. O grande talento de Zahler é para a escrita da ironia e do humor negro e por isso é um deleite acompanhar a viagem destes quatro homens – Kurt Russell, o xerife, Richard Jenkins, o seu assistente falador, Matthew Fox, um sádico e vaidoso assassino de índios, e Patrick Wilson, um capataz de perna ferida – em busca da mulher deste último, raptada por um grupo de trogloditas. Violentas, absurdas, minuciosas, as bocas destas personagens valem todo o filme. Pelo meio do drama e da violência Tomahawk é também um filme sobre a amizade, a liderança, o respeito pela crença religiosa e, acima de tudo, sobre as escolhas. Western revivalista q.b., muito mais existencialista e beckettiano do que qualquer outra coisa.
“Quando o alemão anunciou que ia fazer um documentário sobre a internet e o futuro da tecnologia digital o espectador cinéfilo, sorrindo, terá logo antecipado as tiradas ácidas e irónicas com que Herzog iria “destruir” os entusiastas desse “admirável mundo novo”. Contudo, engane-se quem pensar que Lo and Behold, Reveries of the Connected World se configura como um ataque à tecnologia. Estruturado em 10 capítulos, o filme afirma-se como uma espécie de manual de introdução ao estudo das tecnologias digitais por alguém cuja curiosidade é movida por um misto de fascínio e de receio. Muito poucos temas parecem ficar de fora: o surgimento da internet, a adição à mesma com visita a um centro de reabilitação, a invisibilidade das cyber wars, a aura mítica e a importância da cultura hacker, o advento da inteligência artificial, as questões de invasão de privacidade, a hipótese do colapso súbito das tecnologias digitais e com elas de declínio da civilização, é só escolher.” [texto completo aqui].
“Ainda sobre o tema da visão há que dizer que The Eyes of My Mother, sendo um filme curto – quer no seu orçamento, quer mesmo no alcance do seu episódio de terror gótico – usa o preto e branco para gerir de forma mais hábil o que é para ver. O sangue confundido com a água leitosa da banheira, a papa que há para comer que pode muito bem ser feita de ratos mortos, os saquinhos de conteúdo implícito/explícito, o fundo sombrio do celeiro ou o breve brilho dos esqueletos. Da ausência de cor nasce assim a compensação de uma história de desarranjo mental que se prolonga nos planos das linhas oblíquas, nos pontos de vista aéreas ou distantes da violência prestes a acontecer (a interessante sequência da morte do assassino da mãe com o trabalho sobre o som), na tranquilidade suave do horror. Essa qualidade «grim», que possui todo o filme, faz com que em várias ocasiões se sinta a falta de antagonismos à altura capaz de gerar um maior interesse no espectador, além da composição sugestiva que estende o realismo a seu belo prazer: lembro a cena em que Francisca dança uma música de Amália enquanto o cadáver do seu pai e uma boneca assistem à bonita performance.” [texto completo aqui].
Stop Making Sense vem etiquetado como um dos mais interessantes filmes da história do cinema a captar essa relação entre a energia do rock cantado ao vivo e a imagem em movimento. Não há muitos mais que o façam de forma tão abrangente. Há The Last Waltz (A Última Valsa, 1978) com Scorsese e The Band, há Pink Floyd: Live at Pompeii (Pink Floyd: Live at Pompeii, 1972) de Adrian Maben, o The Concert for Bangladesh (Concerto para Bangladesh, 1972) de Saul Swimmer, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1973) e Monterey Pop (1968) ambos de D.A. Pennebaker e Ladies and Gentlemen: The Rolling Stones (1973) realizado por Rollin Binzer. Poucos mais. O que Demme e Byrne conseguem neste Stop Making Sense é trabalhar sempre nessa aliança e provocação mútua entre a música e o cinema. O líder dos Talking Heads percebe que as suas letras convocam um universo ficcional do qual ele terá que levantar pistas visuais, de movimento, em palco. Por isso, Byrne poderia bem ser, durante a captação dos vários concertos ao vivo no Pantages Theatre em Los Angeles – que serviram de base à montagem do filme – um zombie performer de Jacques Tourneur, com os seus olhares revirados, as epilepsias, o célebre fato gigante inspirado no teatro Noh japonês. Mas, ao mesmo tempo, Demme procura transmutar o ritmo, as coreografias, a energia, o papel dos adereços, em jogos de luz, em alternância de distâncias, em volumes dançantes no plano. No final, um concerto filmado não é mais do que a estrutura do invisível da música – como lhe chamava Da Vinci – trazido para uma dada visibilidade. E, ao mesmo tempo, é essa visibilidade, que ganha uma musicalidade própria, um ritmo.
Costuma dizer-se que a brincar se dizem as verdades. Este bem podia ser o mote da comédia popular francesa nos últimos anos. Lembro-me, assim de repente, de À bras ouverts (De Braços Abertos, 2017) que punha uma família cigana a viver no quintal de um intelectual francês. De Qu’est-ce qu’on a fait au Bon Dieu? (Que Mal Fiz Eu a Deus?, 2014) que punha um casal católico de classe média a braços com as escolhas que as filhas fizeram para seus maridos, cada um com a sua religião. Ou, mais recentemente, Ibiza (2019) onde um padrasto conservador se vê confrontado com a fiesta espanhola como forma de integração com os filhos adolescentes da sua companheira. Em todos estes filmes, além do ícone da comédia popular, Christian Clavier, está subjacente o confronto entre o francês rico, conservador, católico (quiçá o espectador tipo deste tipo de produtos) com um conjunto de realidades que desafiam o seu mundo. Cherchez la Femme faz algo de semelhante. Inspirado no maravilhoso Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959) de Billy Wilder, o que aqui está em causa é a desconstrução dos processos de radicalização fundamentalistas islâmicos, num país como França, e o tratamento da condição feminina nesse contexto. A obra de Sou Abadi, ela de origem iraniana, nem sempre possui a inteligência do humor refinado, mas possui essa virtude de colocar sob um tema dramático, o véu da boa disposição e da ocasional gargalhada.
Não é por acaso que esta revisitação do mito dos licantropos chama ao título algo que faria as delícias de Paula Bobone. A etiqueta, as boas maneiras. Ana, como a Mia Farrow de Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo, 1968), tem um presente no estômago. E ela foi educada para se comportar e poder dar ao seu filho a melhor das educações. E, face a essas “boas maneiras”, há uma separação social entre o mundo de Ana – sempre rindo ou chorando, branca de pele, fazendo fitness diante da TV – e o mundo de Clara – de rosto sério, negra de pele, cujo fitness são as tarefas domésticas que a primeira, sua patroa, lhe dá. Essa distinção esbater-se-á pela relação entre as duas, mas sobretudo porque será a segunda que terá de ensinar as boas maneiras ao menino da primeira. Um lobinho que, educadamente, terá de se manter vegetariano e rapar os pelos depois de sessões de lua cheia e metamorfose. Dutra e Rojas actualizam, económica e socialmente, o mito com estas pinceladas irónicas e sobretudo com a ajuda das “tintagens” que Rui Poças concebe. Por sobre os arredores de São Paulo desérticos e abandonados, um bosque urbano, onde a lua ilumina mais do que as luzes artificiais e em que o rio parece estar já aí, na mesma paisagem mental do shopping. A fábula vive ainda da música cantada, de momentos de animação, ou dos pequenos irrealismos do enredo. A educação e a maternidade dão alguma substância dramática ao horror feérico e tudo parece acontecer simultaneamente, no tempo de hoje e fora do tempo.
Em 2014, o húngaro Kornél Mundruczó tinha encantado toda a gente em Cannes (prémio Un Certain Regard) com a parábola dos cães vadios que se rebelavam contra uma sociedade que se queria pura e sem misturas. O fantástico servia de bandeja à leitura do político em Fehér isten (Deus Branco, 2014). Com este Jupiter Holdja a estratégia é semelhante. Abordar uma questão difícil – a passagem clandestina de fronteiras por parte de refugiados para escapar à guerra no seu país, no caso da Síria para a Hungria – e fazê-lo através de uma alegoria de realismo mágico. O refugiado que não morre à bala (aparentemente), que voa e poderá ser um anjo que, como todas as coisas puras e belas, toda a gente quer usar, capitalizar ou destruir. Kornél ainda busca a questão da culpa para ligar o jovem refugiado ao seu protector/explorador. O primeiro precisará de um pai que não consegue encontrar e o segundo de um filho ou de alguém que resgate a culpa de ter morto numa sala de operações sob o efeito do álcool e da negligência. A política – os refugiados precisariam “voar” para ultrapassar os muros das fronteiras e atingir o bem-estar – e a intimidade dos dois são os nós dramáticos deste filme fantástico. Mas são nós pouco consistentes e que servem a maioria das vezes para pôr a câmara a voar também, para mostrar o virtuosismo dos planos sequência, como se fossem o prolongamento da atracção de feira, do vaudeville que o jovem refugiado será impelido a vender. Por isso, a alegoria puxa o filme para baixo e a mise-en-scène para cima. Consequência é que o centro de gravidade do espectador, constituída pela atenção ao drama e liberdade face a um dictum social e a um show virtuoso, perde-se…
Da vaga recente de filmes de terror que abordam os conflitos da puberdade e de fases mais adiantadas da adolescência feminina – Better Watch Out (2016) de Chris Peckover, Happy Death Day (2017) de Christopher Landon, Beast (2017) de Michael Pearce, Pyewacket (2017) de Adam MacDonald ou Grave (2016) de Julia Ducournau – Thelma (2017) de Joachim Trier é aquele que melhor reflecte os ecos das formas de repressão social que encontramos em Carrie. Poderíamos começar pelo facto de ambos serem escritos e realizados por homens, mas não nos prendamos na questão porque, como o caso de Julia Ducournau aponta, não é apenas por o olhar ser feminino que os resultados são mais satisfatórios. Porém, ao constituírem os títulos dos filmes a partir de nomes de mulheres, reforçam a ideia do universo feminino como estrutura para a produção do mundo e o terror como o seu discurso. Seguindo o pensamento de Simone de Beauvoir, poderíamos dizer que, nos filmes, como na vida, “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Em ambos, cabe à família o papel construtor da identidade feminina, pelo que não só especulam sobre as suas qualidades e fragilidades, como procuram decifrar as suas formas normalizadoras. É na família que essa identidade se organiza a partir das primeiras orientações culturais e sociais, nela se construindo uma rede de relações, comportamentos e condicionamentos. Por se tratarem de famílias tradicionais, circunscritas a moralizadoras praticas religiosas, a aspiração de transformação é mais premente. A libertação, tanto de Thelma como de Carrie, mesmo que obrigue à morte e ao assassínio, acontece apenas quando for dinamitado o casulo familiar, porque é nele que têm origem as mais duradouras e dolorosas formas de repressão. [excerto de um texto de Carlos Alberto Carrilho]
Rever a distopia orwelliana de Terry Gillian em 2019 oferece matéria de interessante reflexão. Talvez não apenas nos temas esperados. Trinta e cinco anos depois há coisas que dão vontade de rir: as tubagens como uma espécie de internet-esgoto, os computadores em modo lupa que ora ninguém sabe como trabalham ora são ecrãs para o Casablanca (1942), as portas gigantes, o sistema de envio de documentos, etc. E outras ideias que têm alguma continuidade hoje, os consumers for christ, os antepassados do Botched, o homem submerso e asfixiado pela democracia. Tudo isto são ideias racionais que, pelo seu significado, fazem com que Brazil caia na armadilha tipo que surge com frequência neste género profético-futurista. O espectador viaja pela mão do seu protagonista através de um universo meticulosa e racionalmente construído, como uma volta na casa do terror, ao qual se subtrai os sustos e terrores e se dedica à lúdica tarefa de fazer assemelhar ou contrastar cada elemento desse mundo com o nosso. Ou, quanto muito, com uma projecção do que o nosso se irá tornar. A Brazil falta assumir a pura dimensão do pesadelo ou do sonho, e de tornar Jonathan Pryce no homem pouco moderno, que luta para amar e sobreviver num mundo mais Tati e menos deslumbrado pelo científico. Porque o paradoxo do filme de Gilliam é precisamente este: o de um filme que está tão empenhado em construir uma visão de futuro que iremos desdenhar que passa todo o seu tempo a admirá-lo em cada detalhe…
Sobretudo depois dos prémios do júri por Oldeuboi (Oldboy-Velho amigo, 2003) e Bakjwi (Thirst – Este é o meu Sangue, 2009), ambos em Cannes, o realizador Park Chan-wook tornou-se um dos nomes mais fortes do cinema coreano. Com este Ah-ga-ssi, a ideia foi adaptar um romance de crime da escritora galesa Sarah Waters (Fingersmith), passado na época vitoriana inglesa, e transpô-lo para uma Coreia ocupada pelas forças coloniais nipónicas. As marcas de Park Chan-wook estão presentes: o plano milimétrico, a abordagem das pulsões contidas pela força dos espaços enclausurados, a violência que se liberta… Aqui, parte dessa pulsão é também uma alusão a uma ideia de fetiche e perversão sexuais motivadas pela sociedade japonesa e seus mores. Mas também a representação a que a clausura obriga: neste caso todas as personagens representam um papel em detrimento do que sentem verdadeiramente. Algo que, como é claro, pode ser visto como uma tipologia para um povo controlado, neste caso de uma Coreia que se vê obrigada a tornar sinuosos os seus planos de futuro, em relação a uma potência ocupadora. Ao contrários dos seus filmes anteriores, talvez se note em demasia neste Ah-ga-ssi, as voltas e reviravoltas da história. Senhoras, criadas, pretendentes, falsos condes, tios freudianos, todos valsam em função de um certo espanto final do espectador. Mas o que importa isso quando é a câmara de Park Chan-wook a primeira a pôr os sapatos de dança?