Novembro foi um mês particularmente dado ao cinema português. Estrearam vários filmes marcantes da temporada, como Vitalina Varela (2019) – que teve direito a duas análises walshianas, aqui e aqui – ou Bostofrio (2018) – a surpreendente estreia de Paulo Carneiro. Mas houve ainda espaço nas salas comerciais para Tempo Comum (2018) e Il sogno mio d’amore (2018) – ambos com direito a crítica individual. Como não há tempo para tudo, ficaram com direito a comprimido o novo filme de João Nicolau, e as longas-metragens de estreia de Pedro Florêncio e Rúben Gonçalves. O intruso estrangeiro desta edição das pílulas é o mais recente filme do realizador de terror Mike Flanagan.
O combustível de Technoboss é feito da simpatia e até da cumplicidade que o filme pode gerar no espectador, mas esses sentimentos deixam, a dada altura, de encontrar do outro lado algo que seja suficientemente estimulante para que a relação entre as partes não avance exclusivamente com o empurrão do segundo elemento: nós. Mesmo nos seus momentos de maior encanto e fantasia, Technoboss nunca se liberta da modéstia das imagens, e do cinzentismo existencial do protagonista. Miguel Lobo Antunes tem certamente um rosto invulgar, e o trabalho que o filme dele exige não é para qualquer um. Existe carisma, sem dúvida, mas a personagem nunca transcende a sua condição de deprimido (um pouco à semelhança das figuras do cinema de Aki Kaurismäki), fazendo depender a sua graça da graça que o filme lhe aporta, e que também a dada altura se gasta.
Technoboss tem uma estrutura aparentada com o filme de sketches. As cenas denotam uma certa autonomia e têm conseguimentos heterogéneos, mas o propósito do humor de cara fechada só por si não garante a coesão do objecto, que parece caminhar sem um objectivo perceptível, e que até em algumas das etapas falha naquilo que seria decisivo: a relação empática entre as personagens. Os avanços e regressos entre uma Lisboa periférica e um Algarve incaracterístico, filmados em película 16mm e em cenários de um desinteresse permanente, ligar-se-ão com certeza à natureza do projecto, o desencanto das vidas que ali se apresentam. Mas para a duração de uma longa-metragem falta algo mais. Ninguém consegue manter activa a curiosidade pelo que possa vir depois quando não saímos de uma espécie de ponto-morto narrativo. O interesse de Technoboss residirá apenas nos ingredientes habituais do cinema de João Nicolau (as suas idiossincrasias), e não naquilo que o realizador fez aqui com eles.
Ricardo Gross
O cinema de Mike Flanagan gosta de vistosas viagens no tempo tanto quanto gosta de se concentrar num mesmo espaço, reunindo uma família de personagens que se vê forçada a testar a fidedignidade das suas relações. Sonho, alucinação, terror e perseguição – com algum esforço conseguimos encaixar nestas palavras/conceitos filmes tão diferentes como os survival movies minimais Hush (2016) e Gerald’s Game (Jogo Perigoso, 2017) bem como os exuberantes ensaios cocteaunianos Oculus (Oculos: O Espelho do Demónio, 2013), Before I Wake (2016) e este Doctor Sleep (2019). Na realidade, Doctor Sleep convida à conjugação dos “dois Flanagans”, porque se é verdade que o filme dá brutos pontapés no mais estável dos eixos espaço-tempo ao longo da sua muito mastigada narrativa – em que as personagens sentem e pressentem muito, propiciando encontros estrambólicos movidos pela força da magia negra e uma história do arco da velha sobre uma comunidade errante que gosta de pilhar as almas alheias – também é verdade que toda esta complexa equação narrativa é um pretexto para se voltar àquela mansão assombrada do filme original de Stanley Kubrick.
O fatigante novelo narrativo encontra num décor já mítico do nosso imaginário cinematográfico um possível espaço redentor. Quando o outrora pequeno e agora adulto Dan Torrance, interpretado por um Ewan McGregor algo à deriva na sua personagem, entra no hall de entrada e caminha nos corredores que tão bem conhecemos, é impossível não ficar com os pêlos do braço eriçados. Flanagan transforma a revisitação destes lugares num grande momento de espanto cinematográfico. Mas… o espanto dura pouco, porque é preciso que o filme cuspa o novelo que teceu, dando-lhe uma qualquer forma final, fechando todas as portas da intriga para que não reste pedra sobre pedra em relação ao imaginário que aqui, qual Caixa de Pandora, se ousou reabrir – e Flanagan reabre esta misteriosa caixa com o intuito de comer o bolo e tê-lo, isto é, ser o novo The Shining (1980) de Stanley Kubrick, conciliá-lo com o universo de Stephen King e, ao mesmo tempo, ser o novo Before I Wake da sua filmografia (o seu melhor filme ainda hoje?). As intenções eram meritórias e o impulso é suficientemente ousado para respeitarmos este produto. Todavia, temos dificuldade de admirar uma salganhada tão grande quando esta é tão insuportavelmente maçuda.
Luís Mendonça
Turno do Dia é um filme que se constrói sobre uma instabilidade, aliás, várias. A primeira, aquela que surge como evidência no plano que abre o filme, prende-se com uma instabilidade da própria câmara. Uma paisagem urbana desolada, a chuva que cai, uma câmara que observa distendidamente um espaço vazio e o que nele acontece quando corre o tempo de uma olhar sem pressas. Eis senão quando o plano fixo ganha mobilidade e a calma de uma observação demorada se vê perturbada por uma câmara à mão que bandoleia por corredores, perdendo (literalmente) o horizonte e virando-se para o interior escuro de uma central telefónica de emergências médicas. Esse choque formal que inaugura o filme será motivo recorrente da estrutura instável que organiza as várias sequências desta longa-metragem de estreia: uma câmara que oscila entre personagens e histórias, mas também entre abordagens documentais (o “fly on the wall” versus o envolvimento e a atenção dispersa de quem deseja recolher do mundo a turbulência das coisas). Essa é a instabilidade surpreendente que quebra o “rigor” deste “documentário observacional” – coisa que já surgia, de forma ainda mais perturbante, em À Tarde (2017).
Mas ao contrário de À Tarde, filme que parecia apresentar todo um projecto de cinema e anunciar uma voz, Turno do Dia é menos virtuoso e conceptual e mais dedicado à “narrativa” e às histórias. De facto, é um filme composto por “sketches”, pequenas histórias de desespero ouvidas nas chamadas do 112 a partir das reacções dos profissionais que procuram triar e auxiliar pelo telefone aqueles que estão em emergência. Só que esses ecos de realidade rapidamente revelam a instabilidade dos próprios profissionais de emergência: exaustos, dessensibilizados e mal pagos. Aí o filme reinventa, mais uma vez, o seu dispositivo quando Florêncio surge na banda de som e estabelece diálogos de circunstância com os telefonistas, desgastados das situações – ora repetitivas, ora emocionalmente violentas – e necessitados de partilhar um suspiro com aquela presença que ali os observa. Esse engajamento do realizador que se liberta da mera observação para tomar o lugar de um estranho confessor humanista é a terceira (e mais reveladora) instabilidade de Turno do Dia. Filme de uma simplicidade desarmante que, nessa mesma simplicidade, se apresenta, afinal, como ousado objecto de relação (instável) com o mundo.
Ricardo Vieira Lisboa
Este filme marca a estreia na realização de Rúben Gonçalves. Já trabalhou como editor em alguns curtas-metragens e na longa Verão Danado (2017), de Pedro Cabeleira, que funciona, de certo modo vesgo, como o olho do furacão para uma nova geração de cinema português (quem não passou por ali?). Infância, Adolescência, Juventude é um documentário tripartido, como o título sugere, sobre o Conservatório de Dança: um espaço onde habilidade e paixão são postas à prova. Gonçalves segue três momentos fundamentais do processo escolar: o momento da selecção e as primeiras aulas; o final do 9.º ano, quando uma decisão tem que ser tomada (continuar ou desistir); e o final do ensino secundário, com a descoberta do palco. Três movimentos que encontram em cada indivíduo o reflexo de diferentes momentos de crescimento e aprendizagem. Um dos primeiros aspectos do filme que mais atrai é exactamente a maneira como os alunos são capazes de transmitir, em conversas entre si (os intervalos, os exercícios na aula de inglês etc.), todo o “conflito interior” que os habita: é dançar um passatempo ou uma arte? Esse dilema é o cerne da trama do filme, já que a pergunta é formulada e respondida individualmente por cada aluno nos três momentos decisivos em que o realizador optou por se concentrar. As respostas sucessivas (que os levam ao final de cada momento educacional) são a forma de superar cada uma das três fases que o título anuncia. A infância é deixada quando se assume um talento, a adolescência chega quando se explora uma aptidão e investe-se na juventude quando se dedica a vida a uma arte.
No entanto, uma das sequências mais poderosas é a da abertura. Uma visão geral da escuridão nos bastidores, tão negra que quase se torna abstracta, e na qual movimentos dissonantes e sons aleatórios constroem uma atmosfera quase surreal. Mais tarde entenderemos que essa cena retrata a ansiedade antes da “estreia” dos alunos finalistas. Um turbilhão de emoções que Gonçalves capturou na sua pureza caótica. Portanto, começar no final é exactamente o começo de um objectivo. Os alunos do Conservatório têm um objectivo em mente. Alguns deixam a corrida, outros cansam-se do longo caminho, outros ainda seguem um trilho diferente, e aqueles que atingem o alvo são finalmente confrontados com a realização de um sonho que parecia impossível. É esse sonho realista que Gonçalves constrói nessa cena incrível, na abertura: um sonho cheio de dores nos pés, cãibras, suor e contusões.
Ricardo Vieira Lisboa