O desenho de uma linha; a criação de uma fronteira. Perante uma divisão natural, o artifício revela-se: a harmonia é interrompida e o espaço (imóvel, estático) é quebrado, dividido através de – um movimento, de – uma intervenção ininterrupta, de ocupação que se transforma no foco dos sentidos; a audição que adivinhava, o olhar que acompanha.
O início de um ciclo num centro de geometrias, de mundos – de linhas, de discursos, de indivíduos – separados, de universos alinhados, de espaços comuns, compostos na (mais perfeita) fotografia – que se prolonga, que se estende – dos cruzamentos da política com o social, do individual com o colectivo, da história com (o mito d)a ficção.
Kurpe (The Shoe, 1998): o título revela o objecto que espoleta a acção, que dá motivo ao desenrolar do filme. Na costa de Liepāja (Letónia SSR, anos 1950), zona de fronteira da União Soviética, militares encontram um sapato de uma mulher.
O sapato é o (in)significante. O significado está na revisitação do papel dos príncipes.
O alerta é evidente: a presença do sapato implica a presença prévia de um indivíduo neste local interdito, de separação, de divisão entre “a União Soviética” e o exterior”, entre “nós e os outros”. O objecto – o sapato – carrega, em si, o peso de uma potencial invasão, de um eventual trespasse do sagrado território, evidenciando a incapacidade – a queda – dos seus guardiões.
A missão é clara e apresenta traços ressonantes – recontextualizados – de um dos clássicos da história das estórias: os príncipes (des)encantados deverão encontrar o pé em que o sapato encaixa, deverão encontrar a Cinderela invasora e restabelecer a ordem, a harmonia e (o poder d)a fronteira.
A premissa é simples, mas a concretização material (fílmica) ultrapassa a base narrativa. O conto revisitado é um pretexto: o sapato é somente um dos diversos veículos que nos encaminha para a (real) história, para o (verdadeiro) filme.
O prolongamento do tempo e do espaço, a expansão do plano, a quebra das fronteiras da edição – o expectável corte e cola, corte e cola, corte e cola de cenas, indivíduos, histórias, memórias – induz a criação de um campo de observação que nos encaminha, a cada passo, para as múltiplas dinâmicas inerentes à existência, à criação de um momento cinematográfico. Peças em movimento que expandem o campo de visão, num trabalho de sentidos que (re)conduz o nosso olhar. Assim, a base narrativa perde o centro: é um movimento cruzado com linhas de histórias do banal que se sobrepõem e criam o real significado da imagem.
Em busca da Cinderela, os soldados interagem com a população num diálogo unidirecional. Neste conto (re)imaginado, criamos e vemos retratos daqueles que estão atrás (e, por vezes, à frente) da fronteira (do filme e) da nação. Crianças brincam, homens e mulheres trabalham, homens e mulheres andam, crianças jogam, mulheres limpam e homens arranjam, homens e mulheres conversam.
Os soldados vagueiam pelo território, sobem e descem escadas, sobem e descem escadas, andam, andam, abrem portas e portas para nos encaminhar para a questão que se impõe: quem são os reais invasores?
O silêncio reina com a presença dos guardiões: as sombras que se arrastam, que atormentam e destabilizam o centro da realidade. O humor não esconde, enaltece a escuridão realçada pelos contrastes de (ausência de) cor, pelos contrastes dentro da fronteira, entre “nós e os outros”.
O sapato é o (in)significante. O significado está na revisitação do papel dos príncipes, dos guardiões: num redireccionar do olhar para as reais (imaginárias) fronteiras, para as reais (invisíveis) linhas de separação, para os reais protagonistas da história.
Sem a quebra do paradigma, o ciclo reinicia-se. A Cinderela regressa para se perder, mais uma vez.