Law and Order (1969) é uma das primeiras radiografias de Frederick Wiseman às instituições americanas. Cinema produzido para televisão, sob a tutela da National Educational Television, onde o cineasta se propôs registar o quotidiano da polícia de Kansas City, no estado do Missouri. Rodado em cima dos assassinatos de Martin Luther King e de Robert F. Kennedy e das noticias que chegavam do Vietname – conflito inextinguível que estava a levar a juventude e a exasperar boa parte da nação. O método observacional de Wiseman, desprovido de narração e muito próximo das ocorrências, expõe as fortes tensões entre polícias maioritariamente caucasianos, equipados com fardas e capacetes que os fazem parecer andróides, e estratos problemáticos de população negra, mas também revela a disponibilidade daqueles homens no auxilio da população nos diversos incidentes, desde pequenos assaltos, agressões e prostituição. Um humanismo e uma empatia que terão surpreendido Wiseman e que acrescenta tonalidades ao documentário. A sequência final de Law and Order apresenta um discurso de Richard Nixon, na campanha que o iria eleger para o primeiro mandato, onde vincava a preocupação com o aumento da criminalidade e se mostrava convicto que iria reinstalar a lei e a ordem na América.
Antes de Wiseman, a Hollywood clássica elegeu o western como um dos seus géneros mais representativos, mapas da História onde se ensaiam os princípios da lei e da justiça na paisagem conquistada da América. Filmes que se revelam teses sobre a lenta concepção das instituições básicas de uma nação, dos quais escolhemos como material para esta e para a próxima crónica três filmes protagonizados por Henry Fonda: Warlock (O Homem das Pistolas de Ouro, 1959), The Tin Star (Sangue no Deserto, 1957) e The Ox-Bow Incident (Consciências Mortas, 1942).
Henry Fonda, que nunca viverá pelos princípios daquele mundo, é uma criatura de moral própria, inabalável, uma figura sobre-humana.
Warlock é uma das peças da segunda vida de Edward Dmytryk em Hollywood, depois de apanhado pelo Macarthismo, com um exílio em Inglaterra, uma estada de seis meses na prisão e rumores de que terá entregue alguns colegas, etiquetados de comunistas, nos interrogatórios do Comité de Atividades Anti-Americanas, o que lhe terá proporcionado material sobre os meandros da justiça e das suas maquinações. Sem dimensão administrativa para alocar um xerife, Warlock é atacada reiteradamente por desordeiros, cowboys selvagens que chegam de fora, de San Pablo, espécie de subúrbio; uma pequena cidade, então, representação do vício, de álcool e de prostituição, mas também de prenúncio de civilização, onde se concentram os serviços (lojas, hotéis), os primeiros esboços de urbanidade, de respeito pelas instituições ainda que precárias, o prelúdio da organização de um território e de uma comunidade, que escolhe a contratação de Clay Blaisdell (Henry Fonda), um Marshall, que ostenta as pistolas de ouro do titulo português, o melhor no seu oficio. Um mercenário que impõe a lei e a ordem.
No primeiro encontro com os representantes da comunidade, Fonda antecipa desde logo tudo o que irá acontecer: vai agradar a princípio, por domar os desordeiros, mas com o tempo achá-lo-ão demasiado poderoso e vão ter medo dele; e aí, partirá. Apesar de receber quatro vezes mais do que o adjunto de xerife da cidade, Fonda, que alguém tinha descrito como vigilante, apostador e pistoleiro, precisa de uma segunda ocupação, ligada ao jogo nos saloons, e faz-se acompanhar por Tom Morgan (Anthony Quinn), braço direito, protector e doméstica do Marshall, pois garante a decoração no hotel, a renovação dos quadros e cortinados, dos aposentos dos dois homens.
Apesar dos resultados evidentes das acções de Fonda, na pacificação de Warlock, o juiz da cidade, a quem falta o poder administrativo, mas que faz uso da retórica, questiona a decisão individual de matar, pois todos se devem submeter a algo maior que os homens, à lei, que não pode estar, então, subordinada ao livre arbítrio. Após a humilhação e o assassinato de mais um deputy (adjunto), o xerife volta a Warlock e, como um eco das preocupações do juiz, diz à população que devem ambicionar a instauração da lei, em vez de a substituírem por um homem contratado para matar. A primeira vez que viramos Johnny Gannon (Richard Widmark), ainda com o genérico inicial a desenrolar, notáramos que ele ficara para trás, na cauda do bando de San Pablo, após a desordem na cidade. Por isso, a decisão de Widmark de se voluntariar para o cargo de deputy é tão surpreendente para a população como previsível para o espectador avisado: Dmytryk passará, então, a enquadrar Widmark entre Fonda e os fora-da-lei, na mediação dos conflitos, a lei como defesa das liberdades e garantias, a procurar a conquista do seu espaço. A lei é ainda frágil, como é franzino o corpo de Widmark quando é emboscado fora da cidade, e lhe é ferida a mão direita, como um condicionamento simbólico à promoção da lei. Mas, Widmark persevera, empurrado pela quimera da justiça, como quem reconhece que o caminho é tão doloroso quanto necessário, e será a sua mão debilitada que recuperará a legitimidade da lei em Warlock.
Entre a lei e os fora-da-lei, para onde o filme empurra o Marshall, Dmytryk dedica-se ao retrato de Henry Fonda, personagem denso e ambíguo, distante do idealismo do Young Mr. Lincoln (A Grande Esperança, 1939), vivido, com aparentes traços de humanismo e crença no futuro, muitas vezes indistinguíveis da frieza com que executa a sua função – como quando impede que os populares façam justiça pelas próprias mãos com três desordeiros do bando, que aguardam julgamento na esquadra; Fonda manda os homens para casa e diz-lhes que fazer parte de um linchamento é o mais baixo a que um homem pode chegar. E será talvez nesta cena que começaremos a decifrar a condição de Fonda, que nunca viverá pelos princípios daquele mundo, uma criatura de moral própria, inabalável, uma figura sobre-humana. O filme e os habitantes de Warlock já nos tinham antecipado pistas, metáforas que projectavam a natureza distinta de Fonda, quando é referido que ele e Quinn dormem em lençóis de seda, ou observamos a indumentária urbana dos dois homens, que os desigualam de todos os outros habitantes e forasteiros da cidade. Mas será a relação entre Fonda e Quinn que explicitará a categorização destes heróis; Quinn assume-se como protector do companheiro, mas preserva ainda mais a relação dos dois, uma ligação homossexual reprimida, que o filme sinaliza com a deficiência de Quinn (que coxeia): o único que não o olha como aleijado é Fonda, esclarece Quinn. O par será corrompido com o envolvimento de Fonda com uma mulher e a perspectiva de domicilio em Warlock, o que entregará Quinn ao álcool e ao confronto enciumado com o companheiro.
Um duelo resolve a relação dos dois companheiros: Fonda mata Quinn, para depois forçar todos os populares a participarem de uma homenagem ao amigo. Enquanto lacrimeja, o Marshall diz a quem o rodeia que eles são insignificantes, quando comparados com o amigo ainda quente; depois carrega o corpo, que deposita sobre uma mesa do saloon. A solenidade termina com Fonda a lançar fogo ao cadáver, como uma actualização da dupla Aquiles e Pátroclo da Ilíada de Homero: era tempo de os deuses continuarem a viagem e deixarem aos homens o aturado trabalho de edificação das instituições e da civilização.