A ironia e o humor são muitas vezes usadas como um mecanismo de auto-defesa, para desarmar tempos menos felizes. Formas de criar uma distância de segurança em relação a uma realidade sombria, são recorrentes nalgum cinema independente americano, que nesse distanciamento procura empatia. Se são elementos que caracterizam algum do cinema de Noah Baumbach, e algum do cinema do qual o realizador parece ser herdeiro, como Woody Allen, e apesar de não faltarem momentos humorísticos, aqui a ironia e o cinismo estão reduzidos quase só ao título. Marriage Story (2019) é na verdade sobre uma separação, mas também sobre um passado em comum difícil de desligar porque ainda existe um presente. É uma história repetida, e é uma história nova.
A alternância entre diferentes estados de espírito, do absurdo para o humor, para a depressão e depois para a repressão, é algo também constante nos filmes anteriores de Noah Baumbach, desde a forma como o divórcio de um casal era visto pelos jovens filhos em The Squid and the Whale (A Lula e a Baleia, 2005), ou a relação turbulenta entre irmãos e um pai adoecido, retratada em The Meyerowitz Stories (2017). Porém, o humor e a ironia não parecem ser aqui uma barreira para ofuscar uma sinceridade na abordagem. Baumbach está disposto a mostrar o lado feio, a permitir infelicidade e remorsos às suas personagens, algo que parecia desaparecido desde Frances Ha (2012).
Nesta infelicidade partilhada, igual para os dois, mas interiorizada e solitária, Baumbach retrata vários momentos desoladores, como uma despedida que se repete, sempre presente ao fim do dia.
Esta é uma história de amor e de desamor, uma sucessão de encontros com os efeitos de uma realidade dolorosa, encapsulados por duas belíssimas cenas íntimas, duas cartas, dois momentos de ternura: uma montagem no início que lista as qualidades de Nicole (Scarlett Johansson), enumeradas pelo seu marido Charlie (Adam Driver), e o seu complemento, em que Nicole faz o mesmo em relação a Charlie, e que é recuperado mais tarde no filme na altura certa. Na verdade, no início nenhum dos dois acaba por ouvir o que o outro escreveu, porque rapidamente percebemos que a carta é afinal um exercício proposto por um terapeuta matrimonial, que prepara o casal para a sua separação.
Nicole é uma actriz, infeliz e presa no seu casamento, sente que perdeu a sua voz, que nesta relação sacrificou uma outra vida que agora quer recuperar. Charlie é director e encenador de um pequeno teatro em Nova Iorque, que depois vários anos começa finalmente a ser reconhecido, contente com a suposta estabilidade familiar que lhe permite dedicar-se ao trabalho, uma segunda família, e não percebe o motivo para qualquer perturbação. Durante anos os dois falaram da hipótese de passarem uma temporada em Los Angeles, perto da família de Nicole e onde esta poderia procurar outros papéis, mas Charlie mostrou-se resistente à mudança, e sua vontade sempre prevalecia. Finalmente, Nicole resolveu mudar-se para Los Angeles, separando-se de Charlie.
Uma das melhores cenas, porque ilustra a divisão entre o casal, acontece logo no início do filme, quando os dois regressam a casa depois uma peça: as palavras são escassas, o tom de mágoa entre os dois é palpável, irrevogável, preenche o espaço. No entanto, Nicole ainda assim pede a opinião de Charlie sobre a sua performance, e quando ele comenta que ela estava a forçar as emoções, ela responde que não consegue chorar em palco, nem fingir facilmente – a seguir, deita-se na cama sozinha, a chorar. É uma diferença entre perspectivas que Baumbach explora de forma hábil, acompanhando de forma distinta os caminhos separados que cada um terá que percorrer.
Pelo meio, há uma criança, o que vai complicar tudo. A comparação com Kramer vs. Kramer (1979), de Robert Benton, é inevitável. Em ambos os casos, a separação é iniciada pela mulher, infeliz com o estado da sua relação, na qual as suas ambições e desejos são renegadas sem que o parceiro se preocupe. Se no filme de Benton, a mulher interpretada por Meryl Streep sai de cena, só aparece fugazmente, a sua (não) presença é dominante, aqui o filme reparte o tempo de forma mais justa, mesmo que ainda esteja sempre mais próximo da figura masculina. Os dois filmes ocupam-se das minudências práticas da separação e o processo da luta pela custódia do filho acaba por ocupar o lugar central. Nesse filme há também uma cena em que a personagem de Dustin Hoffman lê com o filho uma carta da mãe, uma sequência em tribunal onde os advogados exploram as fraquezas de cada um dos pais, e uma intempestiva discussão. Há também um belíssimo pormenor em comum: quando a certa altura, os homens da história recebem uma má notícia, saem para uma caminhada pelas ruas de Nova Iorque, sozinhos na multidão, desamparados.
Esta preocupação com o aspecto prático da luta legal é o menos apelativo de Marriage Story, desinteressante mesmo, porque coloca o lado emocional para segundo plano, em particular quando os advogados ganham protagonismo e quando se discutem aspectos económicos – estamos afinal no campo das desfortunas dos afortunados, onde os seus meios e posses permitem-lhes expandir a sua miséria. A maior ironia do filme é mesmo que, para duas pessoas que procuram encontrar a sua voz, acabam por cedê-la aos seus advogados durante uma sessão brutal no tribunal, que ambos têm de presenciar em silêncio, enquanto os advogados falam por eles, magoando-se um ao outro através de intermediários – uma teatralidade que Baumbach sublinha com os gestos e a divisão entre os dois lados no tribunal.
Porém, quando o filme se atira às convulsões que cada uma das partes enfrenta sem o suporte emocional com que antes podiam contar – do outro – Baumbach atinge um registo notável. Afinal, duas pessoas que antes partilhavam a intimidade do amor, partilham agora a intimidade de uma infelicidade, são arrastados para uma situação em que têm de aprender a desamar, a esquecer. Nesta infelicidade partilhada, igual para os dois, mas interiorizada e solitária, Baumbach retrata vários momentos desoladores, como uma despedida que se repete, sempre presente ao fim do dia. A cena seguinte à discussão no tribunal é uma confrontação dolorosa, numa longa cena em que os dois parecem a estar a aprender a comunicar outra vez um com o outro, como se tudo que estava antes reprimido viesse à tona, num trabalho fenomenal dos dois actores. A câmara de Baumbach, entre o humanismo de Ingmar Bergman e a crueza de Mike Leigh não é intrusiva ou demasiado coreografada, antes parece à espera de conforto, como uma criança que assiste a uma discussão dos pais.
Além das duas cenas com as cartas que cada um escreveu, dois outros momentos são importantes na estrutura do filme, assinalados por dois movimentos salientes de câmara, as duas ocasiões em que esta se torna “visível”, aproximando-se nessas cenas gradualmente das personagens. O primeiro momento é relativamente cedo, um encontro entre Nicole e uma advogada, onde esta pede a Nicole que conte a sua história – parte da cena é filmada com um longo take, em que Johansson através de um longo monólogo passeia pelo escritório numa montanha-russa de emoções, e onde percebemos no fim que Nicole está pronta a seguir em frente com a sua vida. O espelho desta sequência acontece muito mais tarde – Charlie está sempre a perceber as coisas só mais tarde, a tentar acompanhar Nicole – outra vez através de um longo take, no qual Charlie tenta explicar o processo do divórcio aos seus amigos de Nova Iorque da melhor forma que alguém obcecado com o teatro consegue, através da canção de um musical, como se fosse um longo monólogo – está finalmente pronto a continuar a sua vida. São dois momentos poderosos que Baumbach filma de forma cândida e generosa, tratando cada palavra, movimento e expressão como um acto de afeição e entrega humana que é preciso respeitar de forma solene, como se estas personagens pedissem a nossa empatia. Sem o escudo do humor e da ironia, este é um filme pleno de sinceridade.