À sua sexta edição, o Porto/Post/Doc continua a afirmar-se como um local privilegiado para (re)descobrir novos autores, quer sejam nomes consagrados ou novos talentos. Na sua programação minuciosa, não faltam oportunidades para fomentar curiosidade sobre alguns dos cineastas apresentados e algumas das propostas mais arriscadas do programa. Um filme sobre uma mulher que decide desaparecer, um diário contra o esquecimento, uma biografia de alguém que não deixa esquecer e um filme recuperado: este ano, além da matriz original do festival, de explorar a fronteira entre a ficção e o documental, as identidades e as suas representações ocuparam o lugar central. Os prémios principais foram para Transnistra (2019) de Anna Eborn (melhor filme da Competição Internacional) e The Science of Fictions (2019) de Yosep Anggi Noen (palmarés completo disponível aqui); no entanto, escolho alguns filmes que me ficaram na memória.

Ditaram os caminhos do acaso que a jornada desta edição do festival começasse precisamente com a história de uma longa caminhada. Lillian é baseado na história de uma emigrante russa que decide regressar a pé a casa, viajando desde Nova Iorque até ao Alaska, atravessando depois o estreito de Bering. Se a história original terá ocorrido na década de 1920, ao transpor essa odisseia para os tempos correntes, Andreas Horvath consegue criar um retrato assombroso de uma América actual que permite diferentes leituras sobre o estado do mundo, começando desde logo pela questão da imigração, dos rejeitados pelo sistema. Depois de ver-lhe negada um papel num filme porno, porque o seu visto expirou e por não falar a língua, é sugerido a Lillian que regresse à terra natal, a “nova” terra das oportunidades – esta não faz as coisas por menos, e sem nada que a sustente, decide seguir essa ideia, desligando-se gradualmente de uma sociedade que a ignora. Horvath aproveita para mostrar esta América indiferente como um cenário pós-apocalíptico, enquadrando repetidamente a figura de Lillian em planos distantes onde esta contrasta com paisagens de edifícios degradados, indústrias em decadência, florestas ou desertos sem outra alma à vista – à noite, refugia-se em casas abandonadas, sozinha com os despejos dos anteriores habitantes, reforçando a solidão e alienação desta personagem.
Horvath, e a sua co-conspiradora neste filme, a actriz Patrycja Planik, constroem uma das personagens femininas mais singulares e arrebatadoras dos últimos tempos. Esta não fala, porque se nega a isso, porque deixa de lhe interessar, e pouco sabemos dela a não ser como reage a diferentes situações. As suas acções acabam então por defini-la: a forma como vive dos restos dos outros e sobrevive nas margens, e em particular a sua obstinação e irredutibilidade em ceder às dificuldades que se sucedem (como os diferentes elementos naturais), em desviar-se ou duvidar do seu rumo. Horvath pontua o filme com algumas situações dramáticas, e o que poderia ser uma experiência quase radical (um filme sobre uma personagem a caminhar, que não fala), acaba por revelar-se sempre fascinante e habilmente editado com um sentido prático, no qual ajudam as diversas referências à geografia (a dupla percorreu mesmo este caminho, mesmo que de carro, à procura de locais para filmar). Se os realizadores americanos contemporâneos parecem preferir imaginar cenários distópicos em vez de virar a atenção para os mais pobres e despojados de uma sociedade incompassível, verdadeiros fantasmas que sobrevivem nas margens do sistema, é notável o que Horvath consegue alcançar com este filme.
Neste percurso Lillian encontra um propósito, dificuldades, superação e até alguma felicidade efémera, como uma metáfora-espelho para uma vida que não tinha encontrado, precisamente quando parece desistir. Dada a escassez de informação, o filme (e a personagem) é uma espécie de tabula rasa, onde o espectador acaba por projectar os seus anseios e esperanças. Perante esta aventura, é difícil imaginar um futuro monótono ou quotidiano, dentro do sistema, assim que esta chegue a casa. Não parece interessar o que se seguirá, e este isolamento será o que a definirá, sem olhar para trás, nunca. Um retrato fantasmagórico sobre a auto-exclusão, que toca ao de leve em elementos de Sans toit ni loi (Sem Eira Nem Beira, 1985) de Agnès Varda, Gerry (2002) de Gus Van Sant, Into the Wild (2007) de Sean Penn e até Wendy and Lucy (2008) Kelly Reichardt, mas que lembra definitivamente a obsessão comovente de Rosetta (1999), dos Dardenne, numa luta contra o esquecimento.

Uma outra experiência à primeira vista radical, e uma outra espécie de tabula rasa: trata-se do filme-diário de Ute Aurand, realizadora alemã de renome no campo da curta-metragem e do cinema experimental, que aqui apresentou a sua primeira longa. Rushing Green With Horses é uma colecção de vinhetas pessoais do arquivo da realizadora ao longo de várias décadas, que nos cerca e abraça com as suas imagens de intimidade, de diários de viagens e momentos em família, cerimónias do quotidiano, paisagens rurais e de arranha-céus, rostos e flores, risos e olhares de lado, danças e coreografias mundanas. Sem qualquer contexto ou informação além do que vemos (nem uma narração, que poderia diminuir a possibilidade de abstracção, numa opção acertada), o espaço é cedido ao espectador para este procurar as suas próprias associações entre imagens, o seu significado, como se estivesse perante um espelho, reduzindo o cinema ao seu essencial.
É um gesto de partilha da realizadora, que nos puxa para estes momentos de apreciação do trivial elevado a sublime, a vida transformada em memórias que se prolongam e repetem. Dois movimentos acompanham o filme (que foi projectado em película, e que nos seus momentos de silêncio permitiam ecoar na sala o som reconfortante e perdido do projector): uma cadência de câmara agitada, à procura de algo em cada plano, irrequieta, e pequenos cortes rápidos, numa montagem que transforma tudo em mini-elipses, verdadeiros fragmentos de uma memória que tentamos agarrar. Essa efemeridade da memória, que atravessa o filme por exemplo com o retrato de várias figuras que surgem mais tarde mais velhas, é também prova da vitalidade do cinema como forma de partilhar o pessoal, num enternecedor filme.

O novo filme de Kim Longinotto dedica-se a dois elementos que aqui surgem interligados desde sempre: por um lado, a história da corajosa e admirável Letizia Battaglia, fotógrafa italiana que dedicou grande parte do seu trabalho a registar a realidade à sua volta, ou seja, o outro lado, a história da Máfia, e da sua violência, em Palermo, nas décadas de 70 a 90. Se é verdade que estamos perante um documentário relativamente convencional (no uso de entrevistas e imagens de arquivo como elemento fundamental) sobre um tema pouco convencional, Longinotto surpreende pela forma como manobra as limitações deste formato. Depois de utilizar quer as fotografias de Battaglia, quer algumas filmagens de arquivo, quando chega a partes da história mais pessoal da fotógrafa sobre as quais não há registo visual, recorre a imagens de outros filmes italianos da época, criando assim uma espécie de filme-ensaio tímido para ilustrar as palavras de Battaglia, e que procura paralelos entre a realidade e a ficção, ou pelo menos, na forma nostálgica e quase romântica como esta recorda partes da sua história.
A história de vida de Battaglia é certamente inusitada, desde os seus tempos como fotógrafa autodidata em que se aproximava dos corpos ensanguentados nas ruas, à sua evolução como figura reconhecível pela população, como alguém vista como um garante da existência de um registo, mesmo perante ameaças de morte, até à sua vida amorosa, que é aqui revisitada através da entrevista de Battaglia e dos seus reencontros cândidos com homens do seu passado. Porém, tal como a vida íntima de Battaglia é intercalada com os momentos de violência que encontra nas ruas, o filme abandona a certo ponto a vida pessoal de Battaglia para se focar nos desenvolvimentos no confronto entre a justiça e a Cosa Nostra, com maior proeminência para filmagens históricas sobre a espiral de violência à medida que a Máfia siciliana responde ao cerco pela justiça italiana. A história de Battaglia, testemunha-narradora, é a história de Palermo, revelando assim o lado mais importante deste filme como registo histórico.

Outro objecto de importância histórica, De Quelques évènements sans signification é um filme com um percurso inusitado: realizado em Marrocos em 1974 por Mostafa Derkaoui, sucumbiu à censura do país, desaparecendo de circulação, acabando por ser apenas recentemente restaurado pela Filmoteca da Catalunya e ganhar assim uma segunda vida. Apesar de filmado há mais de quarenta anos, revela-se bastante actual e nada anacrónico na exploração da fronteira entre elementos reais e ficcionais, recorrendo até a referências meta sobre o seu próprio processo criativo, numa reflexão curiosa sobre o que pode ser o cinema documental. O filme acompanha uma equipa durante a rodagem de um filme, interessados na questão da identidade do cinema nacional marroquino. Estes questionam-se sobre qual o rumo a adoptar de forma a criar uma obra que retrate as condições sociais, que seja activista e de denúncia, mas ao mesmo tempo entusiasmante e apelativa para o público.
Num primeiro momento, a equipa de rodagem decide entrevistar diversas pessoas na rua sobre a sua opinião do cinema marroquino, e sobre qual a direção que este deve tomar. As respostas que ouvimos, que vão desde o desconhecimento, à defesa do cinema com responsabilidade social ou então do desejo de um cinema mais acessível e comercial, reflectem a modernidade do filme: filmado em 1974, em Marrocos, poderia ser filmado agora, nas ruas portuguesas, que as respostas sobre o cinema nacional não seriam muito diferentes. O filme resolve a questão do cinema de autor vs. comercial de forma engenhosa: a sequência seguinte decorre num bar, onde a equipa procura encontrar uma realidade que esteja escondida, algo autêntico, e a forma como a sequência é filmada, entre o documental da câmara “invisível” e a tensão captada nos rostos pelos planos fechados, movimentos irrequietos e trabalho de montagem resultam na aproximação a um filme de autor, mas encenado como um filme de acção – evoca as cenas nos bares com actores não profissionais de On The Bowery (1956) de Lionel Rogosin, a energia irreverente de Shadows (1958) de John Cassavetes; já os momentos finais parecem prever as experiências iranianas de Nema-ye Nazdik (Close-Up, 1990) de Abbas Kiarostami e Ayneh (The Mirror, 1997) de Jafar Panahi. Uma reflexão sobre as docu-ficções e o seu lado político, aqui a mostrar que esta era uma ideia a germinar já há muito tempo – parece mesmo uma viagem numa máquina do tempo.