Com The Irishman (O Irlandês, 2019) Martin Scorsese regressa a um território familiar, com um filme de novo sobre o crime organizado, que já tinha dado origem a uma das suas melhores fases criativas: Goodfellas (Tudo Bons Rapazes, 1990) e Casino (1995). Estes dois filmes marcaram um acentuar de um estilo vertiginoso, de violência hiper-estilizada e de personagens em espirais decadentes, sem espaço para respirar nem para o subtil, em que toda a construção, de encenação exuberante, acompanhava um argumento frenético. Depois de filmes que pareciam pálidas imitações desse estilo, como The Departed (Entre Inimigos, 2006), Gangs of New York (Gangs de Nova Iorque, 2002) e, de certa forma, The Wolf of Wall Street (O Lobo de Wall Street, 2013), onde a violência e a hiperactividade apareciam como substituto para a substância, em The Irishman Scorsese surpreende pela abordagem desacelerada, pelo retorno a uma apreciação de uma construção metódica, mais preocupado com os efeitos psicológicos da violência do que com o seu espectáculo visual.
Goodfellas começa com um homicídio (primeiro à facada, depois com vários tiros) de alguém que fora raptado e colocado na mala de um carro; Casino começa com uma explosão de um carro, que presumivelmente mata o seu ocupante; já The Irishman começa com um travelling enigmático num lar de terceira idade onde encontramos o narrador numa reflexão sobre a mortalidade (interrompido por um breve flash, que só será resolvido fora de campo, muito mais tarde), e pouco depois uma sequência sobre o início de uma amizade. Se com os seus filmes anteriores sobre a máfia, Scorsese tinha explorado os limites da violência como imagem da crueldade do mundo que as personagens habitavam, uma violência que explodia repentinamente, estilizada de forma cativante, mesmo que chocante e repulsiva, aqui essa violência é algo solene, usada de forma escassa, e que é preciso respeitar. Os assassinatos cometidos pela personagem principal são retratados de forma metódica, como algo rápido que desaparece da imagem, cometidos de passagem e quase de forma envergonhada, como se se tratasse de alguém simplesmente a seguir ordens e sem regozijo; um soldado na guerra a fazer o que é necessário.
Esta imagem – de continuar a cavar a sua própria sepultura – é perfeitamente simbólica do que se seguirá no filme, para a história destes homens.
Esta forma de encarar a violência é explicada em parte pela história pessoal da personagem principal, e da forma como esta encara a sua condição. Uma cena em particular, no início, ajuda a contextualizar esta abordagem: quando era mais novo, durante a Segunda Guerra, ao participar na libertação de Itália, uma das suas funções era executar os prisioneiros de guerra alemães. Como conta: “Era de loucos, mas nunca entendi porque continuavam a cavar as próprias sepulturas. Talvez pensassem que, se fizessem um bom trabalho, o tipo com a arma mudaria de ideias”. Scorsese acompanha este relato com um flashback, que termina com o assassinato dos soldados, sem remorsos ou hesitação, mas sem mais nada: um soldado a tratar da sua sobrevivência num mundo atroz. Como alguém lhe dirá mais tarde: “Estiveste na guerra. Sabes o que fazer”. Esta imagem – de continuar a cavar a sua própria sepultura – é perfeitamente simbólica do que se seguirá no filme, para a história destes homens.
The Irishman é um filme sobre memórias, um acto de contrição. Tudo o que vemos e ouvimos terá que ser entendido como a forma que este narrador se recordar dos eventos, que não encara com grande orgulho. Este mecanismo do narrador é recorrente nos filmes de Scorsese, desde Taxi Driver aos filmes sobre a máfia, e é um pretexto para o filme mimetizar a perspectiva do seu protagonista (solitário e introspectivo como Travis Bickle de Taxi Driver, ou espalhafatoso e paranóico como em Goodfellas). Esta é a história de Frank Sheeran (Robert De Niro), que depois de combater na guerra encontra emprego a conduzir um camião e por acaso acaba por conhecer um influente chefe da máfia (Joe Pesci), que o vai recompensar e proteger (sinalizado com uma simbólica oferta de um anel). Aos poucos, vai fazendo pequenos “trabalhos” para esta nova família, e vai subindo de posição, devido à sua eficácia e discrição. Mais tarde Frank conhece o indomável Jimmy Hoffa (Al Pacino), presidente do maior sindicato americano na altura, e os dois acabam por desenvolver uma relação de amizade: o ego e intempestividade de Hoffa encontram escolta no pragmatismo de Frank. Numa das cenas mais simbólicas do filme, os dois partilham um quarto de hotel, e Hoffa deixa a porta do seu quarto aberta – um sinal de (des)confiança, ou de solidão?
Outro contraste com filmes anteriores é a forma como quase tudo aqui é resolvido através das palavras, antes de partir para a violência. Há menos espaço para a impulsividade anterior, e pelo menos nalguns casos, antes de avançar com uma execução, tudo é tentado e negociado para encontrar outro caminho. Esta “dança” de palavras, entre eufemismos levados ao extremo (com resultados humorísticos até, pela teimosia), nestes homens que falam entre si como se estivessem sempre a ser vigiados ou gravados leva a momentos fenomenais, e é aqui que brilham De Niro e Pesci e um elenco secundário impressionante (e não sendo adepto do histrionismo habitual de Pacino, tudo vale a pena pelo momento em que exclama “they wouldn’t dare!”).
Uma história de amizade, de lealdade, de seguir um código, mas também de traições, de desilusão, de sobrevivência e essencialmente de solidão – homens agarrados ao poder e ao dinheiro, à sua imagem perante os outros, mas que estão a enganar-se a si próprios, a cavar as próprias sepulturas – um formidável retrato decepcionado, distante da sedução e deslumbramento dos filmes anteriores. Frank é incapaz de comunicar com a família, só mais tarde percebe que perdeu as suas filhas, preferia a companhia daqueles homens da outra “família”, mais parecidos com ele – mas estas ligações com os seus congéneres são afinal elos frágeis, num desmoronar de qualquer romantismo pela “causa” que possa existir.
Se a primeira parte do filme tem alguns momentos em que a história se complica por caminhos desnecessários, a última hora do filme é o melhor que Scorsese fez em mais de 20 anos. Enquanto se prepara o destino conhecido de Hoffa, o filme baixa o ritmo, e tudo se amplia: os gestos e as palavras tornam-se solenes, cautelosos e a violência insólita. Este é um filme épico e ao mesmo tempo íntimo, de um magnífico humanismo em relação às suas personagens – como se Scorsese sentisse a necessidade de reconstruir o seu legado e regressar a um cinema mais pessoal, contemplativo, rendido à piedade – não um acto de contrição, mas de renovação e superação.
Numa altura em que The Irishman e Once Upon a Time … in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019) se preparam para discutir as listas de filmes do ano e possivelmente os Óscares, não resisto a recuperar uma história que Tarantino gosta de repetir, sobre a rivalidade entre De Palma e Scorsese:
«Brian De Palma estava a trabalhar em Blow Out (Blow Out – Explosão, 1981), e sentia-se confiante, achava que tinha encontrado a sua obra-prima, um filme que definiria o seu legado. Conta Tarantino que De Palma decide então espreitar o último trabalho de Scorsese – estamos a falar de Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980). Assim que as luzes no cinema se apagam e começa a sequência de créditos, com a imaculada fotografia a preto e branco, a música clássica e Robert De Niro a dançar no ringue em câmara lenta encostado a um canto, De Palma percebeu imediatamente o que se iria seguir, e lançou um sonoro “Fuck… there’s always fucking Scorsese”.»
Desta vez Tarantino pode ter algumas esperanças em finalmente ver um filme seu ganhar os prémios mais importantes, mas é fácil imaginar Tarantino, depois de ver The Irishman, não logo no início mas depois de ver aquele sublime último plano que encerra o filme, a pensar “Fuck… there’s always fucking Scorsese.”