Em diversas entrevistas, Paul Schrader afirmou que escreveu Taxi Driver (1976) como manobra de auto-terapia, uma maneira de repelir os abismos mentais e emocionais da depressão que atravessava, de “exorcizar o mal” (citamos Schrader) que sentia na altura e o aproximava de Travis Bickle. “Sabia que tinha de escrever sobre ele, porque estava a tornar-me nele. Se não o fizesse, estaria em perigo”, disse-nos.
Olhando para Ferrara e para as similaridades biográficas que apresenta com o protagonista do seu novo filme (o ofício de cineasta, a habitação em Roma, o budismo, a já muito referenciada colocação da esposa e filha no filme como personagens) questionamo-nos se não terá feito Tommaso (2019) pelas mesmas razões de Schrader, criando um auto-retrato pincelado com as suas inseguranças, medos, tentações, ansiedades, em suma, com os abismos internos de um ex-toxicodependente e actual pai de família, a fim de não ser consumido por eles. Assumamos que sim, que na forma como o espaço doméstico deixa de ser reduto expiatório para dar gradualmente lugar a uma masculinidade tóxica, paranóica e possessiva, assim como na flânerie amargurada e sem rumo fixo de Willem Dafoe, Abel Ferrara coloca em cena o seu próprio medo da decadência. Tommaso é um filme de exorcismo.
Vemos a personagem epónima em sessões de alcoólicos anónimos, em momentos de meditação espiritual, em aulas de dança a leccionar as gerações mais novas. É um homem que, após um passado irresponsável, traumático, pernicioso, está a tentar ficar bom, reintegrar-se, reestabelecer-se enquanto pai e marido, e com isso alcançar um estado de pacificação consigo e com o mundo. Mas se Tommaso aparenta ser um filme-reabilitação no começo, quase como uma resposta aos filmes-delírio de Ferrara que são, por exemplo, Bad Lieutenant (Polícia Sem Lei, 1992) ou The Blackout (Sentiste a Minha Falta?, 1997), onde as personagens se afogavam nos mesmos vícios auto-destrutivos de que Tommaso foge, não é isso que o fará ser menos crispado. Toda esta morigeração voluntária expõe apenas uma estabilidade aparente à espera do momento de ser quebrada, uma serenidade falsa que a intervalos vai dando os seus sinais de debilitação, como as várias aparições daquele rapaz anónimo, mais jovem, mais bonito, mais vigoroso, que só Tommaso parece ver e que parece corporalizar o seu grande medo: o de alguém que lhe roube a família. Ou antes, o de perdê-la.
A debilitação psíquica está, como sempre em Ferrara, espelhada numa deliberada indisciplina formal, caótica e projectiva do estado psicologicamente angustiado, deturpado e obsessivo do protagonista.
Essa debilitação psíquica está, como sempre em Ferrara, espelhada numa deliberada indisciplina formal, caótica e projectiva do estado psicologicamente angustiado, deturpado e obsessivo do protagonista, preso entre a sua vertigem existencial (menos convulsa) e a sede de redenção (mais manifesta) de outras personagens do realizador. “Sede de redenção” porque, como deixa bem salientado aquele giro de câmara inusitado rumo ao firmamento, na primeira cena, mergulhando tudo (Tommaso, o enquadramento, o espectador) numa enorme luz alvacenta, Tommaso quer merecer o Céu. Daí as constantes sequências alucinativas e sonhos onde abundam elementos iconográficos do martírio cristão (o encontro com um chefe da polícia que parece evocar o de Jesus com Pôncio Pilatos, a Última Ceia feita à volta de uma fogueira com o próprio coração…). Tommaso vê a sua vida actual como uma via crucis pessoal, uma prova de força, resistência e apego aos valores morais recém-adquiridos, num caminho tortuoso onde é em simultâneo condenado e algoz.
Nas ruas quase vazias, difusas, de cores ocres e candeeiros ofuscantes de Roma, Ferrara constrói assim a paixão de um homem aperreado tanto pelo que foi como pelo que não consegue deixar de ser, culminando-a numa crucificação feita de raiva, dor e culpa. Os demónios de Tommaso conduziram-no então à cruz. E os de Ferrara? A eles acreditamos que responda a sequência epilogar, onde a filha, que já tanto tínhamos visto em momentos quotidianos de uma simplicidade enternecedora, vira-se para a câmara e solta na sua inocência a palavra capaz de coibi-los, silenciá-los e, quiçá, esconjurá-los: um pequeno e doce “basta”.