O russo Kantemir Balakov é um jovem. Ainda não chegou aos trinta anos e já em 2017, a sua primeira longa, Tesnota havia ganho o prémio Un Certain Regard atribuido pela FIPRESCI em Cannes. Por cá, vencera a competição do Lisbon & Estoril Film Festival. Um par de anos volvidos e repete a dose. Ou quase. Dylda (Violeta, 2019) voltou a arrecadar o mesmo prémio no festival francês e no Lisbon foi à competição, saindo derrotado, embora as suas duas actrizes, Viktoria Miroshnichenko e Vasilisa Perelygina, tenham sido distinguidas. Começo puxando pelos galões do cineasta, ao qual pode adicionar-se o auxílio do Alexandr Sokurov, em cuja escola foi estudante, para traçar o mapa do aluno “demasiado” perfeito.
Dylda pretende ser uma espécie de fábula amarga sobre um conjunto de mulheres russas esvaziadas pela violência e pelo impacto da Segunda Guerra Mundial. Balakov inspirou-se no livro A Guerra não Tem Rosto de Mulher da escritora Svetlana Alexievich, que recolhe testemunhos de cerca de duas centenas de mulheres que abandonaram os “postos” de apoiantes maternais, amantes, familiares, dos soldados-homem e tomaram o conflito nas suas próprias mãos no campo de batalha. Iya e Masha são duas dessas mulheres. A primeira, a latagona – muito alta e a lembrar o rosto duro de Tilda Swinton -, sofre de síndrome pós-traumático devido à participação na guerra e trabalha agora numa enfermaria. A sua amiga, a pequena, sorridente e maquiavélica Masha, consegue escapar finalmente da frente de guerra e vai em busca do seu filho, que ficou à guarda da primeira.
Já quando Balakov se apaixona pelo enquadramento dos dois rostos femininos, pelas chantagens, pelos desamores, pela trama, o filme afunda-se num abismo de formalismo, numa poesia que busca ser poética, num sangue que devém vermelho.
Desde o início que se apresentam dois caminhos para o filme. De um lado, o universo feminino das personagens como porta de entrada para a Rússia devastada e traumatizada à saída da guerra. Do outro lado, esse mesmo espaço dos corredores exíguos das casas sujas e decrepitas, do sexo barato, das feridas e do suor das enfermarias, das multidões nas ruas à espera do transporte e a forma como este microcosmos servirá de tela para o desalento, a dor, o amor quebrado de Iya e Masha. Dito isto, quando Dylda percorre os primeiros caminhos afigura-se como uma obra pesarosa, determinada a fazer explodir a violência súbita de uma fábula realista. Já quando Balakov se apaixona pelo enquadramento dos dois rostos femininos – planos bergmanianos -, pelas chantagens, pelos desamores, pela trama, o filme afunda-se num irremediável abismo de formalismo, numa poesia que busca ser poética, num sangue que devém vermelho.
É o drama de um cineasta apaixonado pela exterioridade do seu próprio mundo ficcional. Como se fosse o próprio realizador a ecoar no primeiro plano do filme, em que vemos o rosto de Iya como do interior da sua tetania, e em que as vozes do exterior deixam de se fazer ouvir, de abalar um certo torpor perceptivo. Mas há que ser justo: a fotografia de Kseniya Sereda é estonteante, colocando verdes nos cabelos, vermelhos vivos nas paredes, amarelos nas luzes dos interiores. Tudo ganha um tom feérico e violento. Vêm à memória os planos sequência de Aleksei German, com a lógica atravancada do cinema socialista, as “danças” dos corpos por entre outros corpos, por salas plenas de gente, por lavandarias e salas de banho. Pensa-se nos catres suados da literatura do jovem Dostoiévski.
Mas, lentamente, a Rússia tintada, com os seus amputados, como pássaros sem asas, os feridos a sonhar com a eutanásia, começam a desejar uma dada simbologia da ruína, da dor da esterilidade e do amor impossível. Chegamos aos últimos Schroeters, às encenações da sujidade do sexo de Handmaid’s Tale, a uma coisa que perdeu o seu brilho e deixou apenas o berrante. No final fica um certo desânimo e a esperança de que, em próximas obras, tudo se pareça mais com o controlo misterioso da primeira metade deste Dylda.